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Os ademãs de um julgamento

31 jul 2012 às 19:05
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Ópera em nove atos

Se os acontecimentos de fato enojam, alguns ainda podem eventualmente atrair. Este que passamos a narrar teve início, pela nossa observação, a partir das 18h da última segunda-feira (30) em uma anuviada Londrina.

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I

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Venta e faz frio. Vencendo os metros das ruas amareladas pelas luzes de vapor de sódio estão dezenas de londrinenses que retornam às suas casas após jornadas de trabalho, estudos ou passeio. A baixa temperatura afasta os sem-propósito das vias. Mulheres passam com sacolas, casais caminham juntos, grupos de homens tomam ônibus repletos. Os carros zumbem apressados. No coração do sistema de transporte coletivo da cidade, diluída a multidão da hora de pico restam alguns grupos que aguardam a sua vez de tomar um caminho, qualquer que ele seja. Espalhadas pelos corredores, as pessoas conversam ou calam, não há nada de diferente no ar. É mais um dia. No meio das pistas, crianças a caminho de casa se arriscam entre os robustos amarelos. As vidas seguem enquanto a vida política do município, pelo menos momentaneamente, está sob discussão há horas.

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II


Em uma das linhas cujo itinerário leva à prefeitura são poucos dentro do coletivo. Todos têm ar cansado, uma mãe entra esbaforida puxando uma criança com uma mão e entregando o dinheiro das passagens ao motorista com a outra. Mais um dia. Mais uma volta da escola. Nada de novo. Um rapaz usa o telefone celular para contatar diversos amigos em menos de dez minutos. Falam sobre tudo, do último final de semana às conquistas amorosas. A cada pedaço de asfalto que o carro percorre para se afastar do centro, as pessoas tornam-se mais raras pelas calçadas. Nos cantos mal iluminados dos subúrbios as chamativas luzes dos bares são chamarizes. No interior de um, muitos homens se acotovelam, um punhado deles joga sinuca. O bolão rola e se choca contra uma das menores, precisar ímpar ou par é impossível, a jogada ainda se desvela.

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III


A sessão do julgamento já dura mais de dez horas, multiplicadas que foram estas graças a manobras jurídicas, recessos, altercações e vozearias. No centro cívico, o pavimento é pressionado por dezenas de pares de coturnos da Polícia Militar. Em um rápido exame seria possível computar pelo menos cinquenta agentes de prontidão. Eles ocupam viaturas, patrulham a pé, vigiam as entradas da câmara, montam a cavalo e até brincam com cães de guarda. A despeito do aparato, o clima é leve, poucos manifestantes se agrupam em ambos os lados do prédio. De fora é possível ouvir, ocasionalmente, aplausos e gritos de provocação. Há fome entre os expectantes, flutuam, de lado a lado, caixas e sacolas com pizzas, sanduíches, salgados e, mais sofisticados foram estes, macarrão. Uma dupla de policiais caminha, eles estão preocupados com a hora em que serão rendidos pela próxima guarnição. "A gente segue até as 23h", sentencia um deles. Pitoresco, um homem fuma e mira a lua enrolado à bandeira nacional. Ninguém está ali à toa, todos têm conhecimento dos fatos que os levaram a ficar diante do mastodôntico edifício, que, apesar de tribunal não ser, desta feita servirá como tal, e ao cabo da sessão restará na memória dos presentes como casa de justiça ou injustiça, conforme o lado escolhido.

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IV


Passam poucos minutos das 19h30 quando o prefeito finalmente chega. A zoada se faz ouvir por toda a região, fazendo aplacar o barulho dos automóveis que trafegam pela célere avenida Duque de Caxias. Na Praça dos Três Poderes, o trino é redundante também nas insuficientes lâmpadas do espichado poste que centra o largo, nos mastros das bandeiras e nas antenas dos furgões das emissoras de televisão que acompanham a assembleia extraordinária. Partidários de Barbosa Neto se instalam em barracas montadas no jardim em frente à Câmara. Ao lado dos abrigos, espalhados pelo asfalto estão cartazes com dizeres favoráveis ao mandatário. Todos são mantidos sob pedras para enfrentar a obstinada corrente de ar.

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V


No local onde se avolumam os partidários do julgado, coincidentemente estão estacionados os veículos de transmissão de canais da cidade. Na porta da cada van as multidões se formam de acordo com a importância das imagens que são transmitidas do interior da câmara. "Tem gente orando lá dentro. Tem que ver o que é de Deus e o que é carne. É igual Deus lhe pague, é fácil falar e colocar na mão de Deus", diz um dos presentes. A maioria dos ouvintes prefere guardar silêncio. Funcionários de uma das emissoras reclamam das barrigas que roncam, mas logo a situação é contornada com a liberação, pela chefia, de jantares alternados em um restaurante das proximidades. O julgamento volta a ser suspenso por alguns minutos, o suficiente para que os grupos se separem. Celulares não param de tocar em diversos pontos, aos bocais são disparadas ordens, sugestões e dúvidas. Um homem cego se aproxima e pergunta pela entrada da câmara, no que é respondido por alguns. Um dos técnicos de TV tem presença de espírito suficiente para acompanhá-lo até a porta.

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VI


Se aproximam as onze horas corridas de trâmite. Barbosa está no púlpito para exercer o seu direito à palavra. Os motejos o incomodam, ele pede a ajuda do presidente da casa para iniciar o seu discurso de defesa, talvez sua última fala na condição de prefeito de Londrina. O apelo aos valores democráticos é atendido pelos que estão nas galerias. No exterior, em frente aos monitores das unidades de TV, as pessoas se multiplicam a cada segundo em que corre a notícia de que o acusado finalmente rebaterá as denúncias. A alocução começa evocando o versículo 13 do livro de Romanos. "Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus", catequiza. Todos os partidários entregam-se a um profundo silêncio enquanto suas pupilas focam as telas dominadas pela imagem de Barbosa e seus ouvidos se ocupam das palavras do líder. Ninguém ousa falar, ninguém ousa respirar fora do compasso dos demais. Não seria exagero definir esta experiência como uma antessala de transe, não configuraria injustiça dizer que os corações palpitam em uníssono. A concentração devotada é total. A aglomeração não para de ganhar mais corpos, todos solenes. Enquanto o ainda prefeito responde com veemência aos achaques, um homem mantém os olhos vidrados na imagem e palita os dentes maquinalmente. Um senhor em terno escuro surge de repente e tenta enxergar uma das telas. Mais baixo do que a parede humana, ele estica o pescoço o máximo que pode e se equilibra nas pontas dos pés. O ângulo não o agrada e ele torna a caminhar entre a massa procurando um lugar. Quando o discurso enfim se encerra, um rapaz encolhido no interior de um agasalho preto comemora elogiando a performance. Outros chegam a sugerir que Barbosa não deveria ter se exaltado ao ser interrompido pelos protestos oriundos de uma das galerias. Em geral, os rostos estão confiantes. O prefeito falara bem, concertam. "Matou a pau, matou a pau", comemora um dos presentes.

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VII


A cavalaria da PM trota e alguns quero-queros revoam. Os advogados voltam a ocupar o centro do embate. O início da votação é anunciado. As quase doze horas de trabalho serão resumidas em menos de cinco minutos. A torrente a favor da cassação começa a jorrar, a tensão aumenta geometricamente do lado de fora. Sem senhas, sectários do prefeito só fazem torcer por um milagre após mais alguns votos contrários. O inevitável começa a se desenhar, as pessoas se dispersam, cada qual busca um lugar, alguns recorrem a celulares, passam adiante a notícia e já planejam os próximos passos, por mais inúteis, neste momento, que possam ser. Três mulheres choram abraçadas, todos se voltam para elas. O décimo terceiro "sim" sepulta as esperanças, ninguém permanece mais um segundo na frente do antes tão confortável local de observação. As telas e monitores já não importam, de pouco valem. A praça é espaçadamente ocupada.


VIII


Como um trovão, primeiro se veem as luzes das equipes de televisão e depois o barulho tonitruante do séquito que engloba o prefeito. Ele rompe pela porta da câmara em direção ao estacionamento da prefeitura. Para chegar ao destino, ele precisa de passos firmes para vencer as poucas centenas de metros e paciência para suportar a tormenta materializada em perguntas e gritos. Os asseclas tentam protegê-lo da massa formada por manifestantes, jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas. Avançar centímetros demanda eternidades, rojões rebentam ao longe, buzinas são acionadas, a novidade se espalhou, cada um se manifesta como lhe apraz. O turbilhão de luzes, flashes, estalidos e sopapos continua a avançar, rodopiando na escuridão. Na cauda da excitada comitiva vai uma menina recém-admitida à adolescência. "Vocês não podem fazer isto com o meu prefeito, vocês não podem fazer isto com o meu prefeito", esbraveja repetitivamente, entre soluços e lágrimas, uma voz gutural.


IX


Barbosa some na noite a bordo de um carro preto que parte em alta velocidade. Os que o acompanharam até o estacionamento voltam sem testemunhar uma frase, sequer uma palavra do deposto. Por mais preparado ou indiferente que pudesse ser, nenhum dos envolvidos consegue esconder um sutil esgar pasmado. As pupilas dilatadas também denunciam as alterações fisiológicas causadas pelo desenlace alucinante. Microfones tornam a captar, em todos os desvãos e passagens da Câmara, explicações, projeções, possibilidades, certezas, verdades, mentiras. Vozes se transformam em ondas, dispersam-se no éter. Diante dos fatos, ou melhor, do fato, nada passa de um palavrório que ressoa pelas paredes, ganha as janelas, se lança na noite. Suor escorre, todos os rostos brilham, exibem veias, tudo é novo, uma mudança se deu. Paletós tombam sobre escrivaninhas e cadeiras, gravatas são esgarçadas impiedosamente, o espólio ainda está lá, fresco. Fossem outros os tempos, os jubilosos celebrariam bradando sic semper tyrannis, ao passo em que os solapados evocariam o nascimento de uma nova noite das facas longas. Nos dois casos, o comum é o sangue indelevelmente escorrido.

Auber Silva


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