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As cores do urubu - Crônica de Sergio Diniz da Costa

13 out 2022 às 20:11

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Em meio a uma caminhada diária, volto meus olhos para o céu e, a uma grande altitude, o voo solitário de uma ave negra me chama a atenção. E, nessa contemplação, assoma-me à memória um fato ocorrido há mais de 60 anos na rua onde nasci, na saudosa Vila Amélia da minha Sorocaba, fato esse narrado por um tio, um perspicaz observador e narrador das coisas curiosas da vida.

Naquela época, Sorocaba, de forma geral, era uma típica cidade do interior, com muitas ruas de terra, onde as crianças, em suas brincadeiras pós-aulas e almoço, disputavam os espaços com os animais; os cachorros em particular, e até mesmo animais menos ‘domésticos’.

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E foi numa bela tarde de verão que um desses fatos curiosos ocorreu: um roedor morto em um canto da rua chamou a atenção de um corvo.

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Segundo meu tio, o tal corvo, pelo jeito, já tinha vivido uns bons anos de sua vida penosa, pois dava para perceber que sua feição era de uma ave idosa; o negrume de suas penas já estava um tanto quanto descorado, acinzentado mesmo, e faltavam-lhe algumas penas.

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Todavia, não bastasse isso, a pobre ave ainda tinha uma descompensação física ainda maior: era manquitola!

Apesar de todos esses obstáculos impostos pelo tempo e pela genética a pesar-lhes contra seu intento, a corajosa ave não resistiu àquele ‘saborosíssimo’ petisco e, como essa espécie de ave não tem habilidade para caçar, pois suas patas não funcionam como ferramentas para agarrar e matar presas, pousou no chão e, manquitolando, dirigiu-se, avidamente, ao seu almoço.

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Para o seu azar, porém, e, ao que tudo indica, a visão periférica afetada pela idade (ou, o mais provável, a obsessão pela carniça!), não percebeu a presença de alguns cachorros que, àquela hora da tarde, estavam perambulando pela rua.

Danou-se a pobre ave! Os cachorros, numa ‘ladração’ infernal, passaram a persegui-lo. E ele, aos trancos e barrancos, quase virou, de caçador, a caça!

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Um muro salvador, entretanto, impediu a infeliz ave de ser trucidada. E, num supremo esforço, num salto se pôs a salvo no alto daquela muralha de pedra. E, não deixando por menos, se vingou dos cruéis cachorros, e de uma forma ainda mais cruel ainda: vomitando sobre eles!

Eu não me lembro, ao ouvir essa história, qual foi o final dela; se, afinal de contas, o tal corvo estropiado, após essa infausta aventura, pelo menos pôde saborear seu merecido e dificultoso almoço.

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Eu me lembro, sim, do nojo que meu tio expressou ao contar essa triste história, pois um dos cachorros vomitados era o dele. E coube a ele, ainda menino, dar um demorado e nauseabundo banho de sabão no peludo arrependido.

E me lembro, também, do asco que eu também senti ao ouvir a história, uma vez que, até então, tinha verdadeira ojeriza pelos tais ‘corvos’, vez que, para mim, eram as aves mais feias do reino animal e cujo cardápio era... carniça!

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Um belo dia, outro momento me marcou a memória, envolvendo a tal ave. Ou melhor, um ‘parente’ dela.

Às quartas-feiras a TV exibia ─ na época, em preto e branco ─ o programa ‘Cine Mistério’, e um dos filmes a que assisti era um clássico do gênero: ‘O Corvo’, do escritor norte-americano Edgar Alan Poe. 

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Aquele ‘corvo’ me chamou a atenção, porquanto era muito diferente daquele que eu conhecia. Aquela era uma ave inteligentíssima, muito popular em países do Hemisfério Norte, como os Estados Unidos e a Inglaterra, e tinha uma aparência mais bonita, mais nobre. E sua alimentação, ainda que incluída a carniça, era, basicamente, formada por insetos, grãos de cereais, bagas e frutos.

Aquela descoberta desconcertou o menino que eu era e, desoladamente, vim a saber que o meu corvo, na verdade, não passava de um ‘urubu’. Mais especificamente, o urubu-de-cabeça-preta. Um reles urubu! Uma ave de nome tão feio quanto a própria aparência dela!

E, na minha memória de menino, ficou impregnada a imagem daquela ave feia, nojenta, suja, que vive em lixões e come carniça... Imagem essa, aliás, que já acompanha o urubu há séculos. A História narra que Charles Darwin, quando visitou a América em 1832 no Beagle, encontrou o urubu-de-cabeça-vermelha e comentou: "São aves nojentas, que se divertem na podridão".

O tempo, no entanto, é um exímio cirurgião; um cirurgião que, literalmente, ‘opera milagres’ em relação ao imaginário e ao preconceito da gente. 

Os estudos escolares, todavia, descortinaram-me, mais do que a aparência dessa ave tão desprezada por muitas pessoas, um ser imprescindível para a natureza.

Eles são os ‘garis’ do meio ambiente, mantendo-o limpo, eliminando desde carcaças até ossos, sendo responsáveis pela eliminação de significativa quantidade de carcaças de animais mortos na natureza. Com isso, eles ajudam a prevenir a propagação de doenças, eliminando bactérias que poderiam adoecer ou matar muitos animais selvagens e domésticos. Alguns estudos demonstraram que em áreas onde não há urubus, as carcaças levam até três ou quatro vezes mais tempo para se decompor.

Enquanto continuo a minha caminhada e relembro os tempos idos, agora, mais do que simplesmente observar aquela ave solitária no céu, usando as correntes de ar quente para planar por horas, fazendo belíssimos movimentos ascendentes em espiral em largos círculos, admiro (quase extasiado!) a imponência de seu voo, de grande altitude, sobrepujando, em muito, a altura de muitas outras aves, canoras e coloridas.

E o negro de suas asas mostra-se um detalhe que o pincel do Criador destacou entre o branco das nuvens e o azul do céu. Um detalhe para nos mostrar as cores do urubu. As cores que somente podemos perceber com as cores da alma.


Sergio Diniz da Costa

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