por Edmílson Caminha, autor de Palavras de Escritor
"Você gostaria de conhecer o quarto e a biblioteca particular de Borges...?", perguntou María Kodama, ao me acompanhar atenciosamente à saída da Fundação Internacional Jorge Luis Borges, na rua Tomás de Anchorena, bairro da Recoleta, Buenos Aires. "Sim, muito!", respondi à mulher de pequena estatura, cabelos brancos lisos, olhos herdados do pai japonês, a vestir com elegância uma capa verde lodo. Marcamos o encontro para o domingo próximo, 3 de maio, às 10 e 30 da manhã, ali mesmo, na instituição por ela criada em 1988 e que até hoje preside.
Com a voz baixa e doce que também lhe revela a origem nipônica, mostra-me, primeiramente, as salas de exposições no piso térreo, onde se veem esculturas, quadros (de tigres, sobretudo, uma das paixões do escritor) e uma curiosa instalação, "Le livre des objects magiques", presenteada por uma universidade belga. "Tente suspendê-la...", diz. E ante a minha impressão de que pesa toneladas: "Vê ali dentro aquele objeto metálico, esférico? É o Aleph. Por isso que ninguém consegue mover essa caixa...", explica, aludindo à famosa página do contista, sobre o mistério de uma bolinha em que se condensaria todo o universo.
O apartamento 6-B, na rua Maipu, 994 foi o último endereço de Borges em Buenos Aires. O quarto em que dormia é o que Kodama levou para a Fundação: surpreendentemente simples, como a cela de um monge, quase. Cama pobre, de solteiro; escrivaninha pequena; estante com uns poucos livros. Na parede, moldura com desenhos do Jorge Luis criança, ao tempo em que a avó paterna lhe contava histórias para dormir e sonhar. Junto à parede, uma das mais conhecidas imagens de Borges, com os olhos fechados, como se num esforço de concentração. Era o sinal de que compunha um poema ou fabulava um conto, revela Kodama: "Ele precisava apertar as pálpebras, porque nem o pensamento de ter os olhos abertos podia distraí-lo". Depois, gentilmente me pede para fechar os olhos. "Agora abra!" E vejo uma foto do seu arquivo pessoal, nunca publicada, feita em uma reserva ecológica no entorno de Buenos Aires: o escritor sentado em uma cadeira com um enorme tigre a abraçá-lo, o felino quase a cobrir-lhe o corpo, Borges com a alma aberta em sorriso, a expressão de felicidade plena.
Enquanto subimos os degraus rumo ao primeiro piso, pergunto à professora ("me chame de María, por favor") sobre as relações que mantém com brasileiros. O nome citado é o de Nélida Piñon, grande amiga, escritora luminosa, a admirável romancista de "A república dos sonhos". Lembra a viagem que fez com Borges a São Paulo, a conferência proferida em um galpão da Folha de S. Paulo (o auditório não comportaria tamanha plateia), centenas de leitores em busca de autógrafos, o medo da acompanhante de que o ilustre convidado pudesse sofrer um acidente... No topo da escada, uma bela visão da casa vizinha, onde Borges escreveu "As ruínas circulares", ao tempo em que lá morou, de 1938 a 1943.
Chegamos, afinal, à biblioteca! Não uma qualquer, mas a do escritor que sempre a imaginara como a mais perfeita representação do paraíso... Três mil volumes bem cuidados, agora devidamente catalogados e organizados. O primeiro que reconheço é "Os lusíadas", a que se juntam Shakespeare, o "Quixote", "Martín Fierro", romances de Dickens, Stevenson, Twain, edições em inglês, francês, alemão, espanhol... Quero saber da confusão em torno de "Instantes" (se pudesse viver novamente minha vida, / na próxima trataria de cometer mais erros...), versos melosos equivocadamente creditados ao poeta argentino (por quem, é claro, não lhe conhece a obra):
Nem me fale! Foi um dos maiores problemas que já tive! Passei oito anos à procura do livro em que pela primeira vez se publicou esse poema, até que o encontrei: é de uma norte-americana chamada Nadine Stair. Pude, então, demonstrar que Borges nunca teve nada a ver com aquilo. Apesar da prova documental, ainda hoje o poema circula pela internet, em jornais e revistas como se fosse dele. Para que você tenha ideia, certa vez fui a Córdoba para uma homenagem a Leopoldo Lugones. A certa altura, alguém anunciou que leria um poema de Jorge Luis Borges, exatamente... "Instantes"! Pedi a palavra e agradeci a oportunidade de, pessoalmente, esclarecer pela enésima vez que aquela pieguice não foi, não é e nunca será de Borges! Você bem que poderia me ajudar a estabelecer a verdade também no Brasil...
Durante o almoço, María recordou o dia em que, com 12 anos de idade, viu o escritor pela primeira vez, levada por uma amiga da mãe a uma conferência por ele proferida. "Sabe o que Borges me pareceu? O coelho branco de Alice, pelo desenho da cabeça e pela conformação da testa..." Reencontrou-o quatro anos depois, na rua, quando lhe disse que pensava em ser professora e dele recebeu o convite para que juntos estudassem saxão... Em 1975, torna-se a secretária do mestre, e com ele se casa em abril de 1986, a somente dois meses da morte daquele a quem se dedicara por completo. "Algumas amigas nunca aceitaram minha relação com Borges. Acham que ele me inibiu, frustrou a carreira acadêmica que eu poderia ter cumprido. Mas que fazer? Foi uma escolha minha, acompanhá-lo, viver realmente em função dele..." Assim como Valerie Fletcher, a secretária de T. S. Eliot que, 38 anos mais nova do que ele, aceitou-lhe o pedido de casamento em 1957, para um curto mas apaixonado amor que duraria apenas oito anos, até à morte do poeta.
À queixa das amigas, soma-se a maldade pública – pela boca, por exemplo, do biógrafo Alejandro Vaccaro, que María simplesmente detesta: "Dizem que me casei com Borges para ter direito à sua herança. Ora, ele já me instituíra herdeira em testamento! Eu nem queria casar-me, a ideia foi dele; na verdade, nem gosto de casamento... Borges me propôs, até, que nos casássemos em uma igreja ortodoxa russa. Imagine, logo ele, completamente agnóstico...! Mas o agradava a beleza do rito, os noivos com aquelas coroas..."
A propósito, María comenta: "Quando conversávamos sobre fé, dizia-me que no cristianismo só gostava da ressurreição, a crença de que um dia todos estaremos de volta. E me propunha que nos reencontrássemos em outra vida...
Quando lhe confessei que escolheria renascer como cientista, retrucou: "Ah, cientista não! Nesse caso, vou preferir ser astronauta..."
E anima-se, então, a revelar um segredo: "Sabe qual a música que elegemos como nosso ‘hino’? Um dia, quando a pus para tocar, Borges perguntou: ‘Que música é essa? Que maravilha! Que força!’ Não, não era um concerto de Bach nem uma sinfonia de Beethoven, mas... ‘Another brick in the wall’, do Pink Floyd! Que passamos a cantar em todo aniversário que passamos juntos. Ele achava o ‘Parabéns pra você’ muito bobo..."
Quanto ao Prêmio Nobel, María garante que Borges o perdeu definitivamente no ano em que visitou o Palácio de la Moneda, para uma homenagem que lhe prestaria Augusto Pinochet. "Dias antes, um jornalista sueco telefonou para dissuadi-lo da viagem. ‘Obrigado pelo alerta, mas acho que não devo desmarcar um compromisso apenas em função de que possa ganhar esse prêmio’, foi a resposta." E o Nobel de literatura não saiu para a Argentina...
Pergunto sobre a morte do escritor na fria e distante Genebra, em 14 de junho de 1986: "Foi ele quem quis assim. Com a saúde cada vez pior, chegamos a cogitar de uma UTI aérea, para trazê-lo a Buenos Aires. Borges recusou, por lembrar-se do que ocorrera com um político argentino, eterno adversário de Perón. Em coma, teve a foto exibida na primeira página dos jornais, cheio de sondas e tubos. Resolveu, então, morrer na Suíça, e determinou que lá mesmo deveria ser enterrado. Com sua visão clara das coisas, ele dizia que os argentinos teriam de entender que a necrofilia, e esse permanente tráfico de cadáveres de um lado para o outro, lhes trazem má sorte." Alusão ao corpo de Evita, levado clandestinamente até para o exterior. Não por acaso, a morbidez com que os argentinos cultuam a ex-primeira-dama lhe inspirou "O simulacro", uma pequena obra-prima do conto mundial.
Ao final do almoço, recebo um exemplar do "Jorge Luis Borges en el Museo Nacional de Bellas Artes", catálogo da exposição realizada em 1999, comemorativa do centenário do seu nascimento. Foram quatro inesquecíveis horas de conversa com María Kodama, sobre o escritor cuja "Autobiografia" se encerra com a simplicidade dos homens verdadeiramente grandes: "O que quero agora é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado."
Edmílson Caminha - Foto divulgação.
Escritor e jornalista, Edmílson Caminha é consultor legislativo da Câmara dos Deputados, em Brasília. Obras publicadas: Palavra de escritor (1995); Inventário de crônicas (1997); Villaça, um noviço na solidão do mosteiro (1998); Lutar com palavras (2001); Drummond, a lição do poeta (2002); Pedro Nava: em busca do tempo vivido (2003); Brasil e Cuba: modos de viver, maneiras de sentir (2007); O monge do Hotel Bela Vista (2008).