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Lua de Março - Poema de Soares Feitosa

20 mai 2023 às 01:01

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- Soares Feitosa - Foto divulgação publicada no Jornal de Poesia
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Era uma lua de dezembro, a última:

vertigem e vertical,

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o centauro-de-mim

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Ontem ganhei o dia (Crônica de Marli Boldori)

apeou-se e gentilmente perguntou ao vento,

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às palmeiras, às tanajuras, às avoantes: 

    — Quem a jovem, de ar tão calmo,

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    que fizera o potro estacar, 

    corcovear, empinar?

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Então, as palmeiras, 

o Vento, as avoantes

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e as tanajuras foram voz:


    «É uma serrana,

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    que também se assustou

    com o teu estranho ginete.

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    «E fica sabendo, forasteiro,

    aquela que quase te matou de susto

    é a mais bela dentre todas as serranas,

    desta Serra que chamam Grande,

    dita também Ibiapaba:


    «A mais bela.

    Ela.

    Cuidado!» — Disseram.


E numa lua bem próxima,

o mesmo potro, ainda mais selvagem,

risca às porteiras, escarva o chão, 

e mais uma vez

as palmeiras, as avoantes

as formigas voadoras,

quando também o Vento frio são chamados

e confirmam:

    «Ela —

    — que não te esquece.

    «Vê, forasteiro,

    não chove há meses nesta serra,

    mesmo assim, os regatos murmurejam,

    o chão está ensopado

    de tanta lágrima:


    «Dela...

    de só.


    «Vieste roubá-la, temerário,

    neste estranho animal,

    que também é tuas costas, 

t    eus pés, tuas mãos?


    «Ficaremos sozinhos? 

    Tens mesmo a coragem de levá-la?

    Achas, aventureiro, que deixaremos?»


O potro-centauro não se intimidou

e explodiu resoluto:

    «Vim buscá-la!

    Li nos olhos dela,

    ela disse que vai.»

Ao que a tanajura, 

que sempre cria asas a se perder, disse:

    «Sinto que você vai roubá-la; 

    não posso dar jeito.

    «Trabalho a terra, trabalho o céu:

    sou mais que pássaro,

    se ela vai, vou com vocês»


Foi a vez da avoante:

«A tanajura sabe pouco do mundo,

nunca vai muito longe,

voa só um pouquinho, 

se enterra outra vez.

«Sou de arribar, arribaçã,

groteio tudo, meu giro é amplo.

Se a moça vai, quer'ir também.»


    A palmeira, puro ouro, puro verde, falou:

    «Não dou fé em bicho que avoa.

    Prefiro o chão, profundo, para enfiar,

    prefiro o céu, vazio, para subir!

    Donde raiz e céu contemplo tudo:

    estou!

    «No mesmo canto, 

    todos os dias, todas as horas,

    tenho pacto com o Sol, 

    que sabe e precisa de mim:

    por dentre o leque de minha copa, 

    os bichos suavizam os olhos

    e contemplam, fulgente, o Sol, 

    de levante e ocidente:

    é quando marco sombra vasta.

    «Quando não instalo sombra nenhuma,

    estou dividindo, 

    ao meio, 

    o dia!


    «Compadre Sol sabe disto  


    «O Sol se aproveita do mim

    para irisdescer o vale:

    sem a franja da minha copa,

    o clarão do Sol seria um luzeiro sem matiz.

    Ele sabe!

    «O tamanho e a direção da minha sombra

    bendizem a aurora, abençoam o crepúsculo!


    «Mesmo assim, 

    se a moça vai contigo, forasteiro, 

    sigo também...


    «Onde chegarmos, deito raiz,

    raízes que serão tuas,

    raízes de céu, raízes de terra,

    pois de vasta descendência.» 


Eis que o Vento até então calado: 


    «Não estou gostando desta conversa!

 

    «Já viste, forasteiro, 

    o perfume da moça, senão quando do meu soprar?

 

    «A brisa, somente a brisa 

    consegue trazer-te a fragrância da rosa.

    «Minhas: 

    a brisa, a fragrância;

    talvez a rosa: 

    minhas!


    «Lavro, para ti, os sons, 

    as palavras murmuradas, 

    quand'ela fala sozinha 

    e diz teu nome.


    «Seriam a fugaz arribaçã, 

    a louca tanajura 

    que te levam recados?


    «Quantos segredos já foi-te contar

    a acomodada palmeira?


    «Confias, forasteiro, em asa de formiga?


    «Que a palmeira arrogante

    se retrate da fábula que inventou do Sol!

    Posso arrancá-la pela raiz!


    «Levo e trago os murmúrios do regato.

    Só eu sei peneirar a neblina:

    quando mestre Sol timidamente

    fabrica o Arco-íris, verdade mesmo, 

    o Artista sou eu —

    tanjo as nuvens!


    «Quem sustenta as aventuras da arribaçã?


    «Vê se ela atreve um vôo contra mim?!


    «Quem dá asas à tanajura 

    senão este velho Vento?

 


    «E fica sabendo, forasteiro:

    para o conforto da moça, 

    mando soprar ameno;

    porém, intrépido e tórrido aos corações,

    é assim que estremeço o assobio da noite

    às biqueiras da saudade 

    quando a ausência

    é medo.


    «É assim que sei soprar, 

    e assopro. — Disse o Vento


 

E decidido, compadre Vento finalizou:

    «De uma vez por todas,

    fica sabendo:

    se ela resolveu te seguir,

    também vou.


 Marquei território

numa lua de março:


    Butim de guerra,

    butim de susto:

    trint'anos,

    quero outros trinta!

    Sim, eu quero! —


    ela disse.


 

Poema de Soares Feitosa

Salvador, madrugada alta, 30.04.1995



 





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