De todas as músicas que Nana Caymmi interpretou ao longo da carreira, ela guarda especial carinho por uma - Acalanto. Não por acaso. Bebê indócil ("Tenho o sono difícil até hoje", diz), motivou o pai, o grande Dorival Caymmi, a compor essa singela canção de ninar. Dorival, com sua voz poderosa, cantava baixinho junto ao berço para que a criança conciliasse o sono. "Eu tinha seis meses quando ele fez Acalanto, depois gravamos juntos quando eu era adolescente, e canto com emoção até hoje", diz Nana, lembrando também que ganhou esse apelido em razão da música (o nome de registro é Dinahir Tostes Caymmi). Prestes a completar 70 anos de vida, dia 29, ela recebe agora outro presente, o filme Nana Caymmi em Rio Sonata, do francês Georges Gachot, que estreia amanhã.
"Eu tinha sugerido a eles que o filme se chamasse Acalanto, mas como haverá lançamento no exterior, acharam que o título não faria muito sentido para o público estrangeiro e preferiram o outro", diz a cantora em conversa com o Estado.
Títulos à parte, Nana parece satisfeitíssima com o filme. "Não é sobre a minha vida, é sobre a minha sensibilidade musical", diz. De fato, se Rio Sonata apresenta traços da biografia, concentra-se mais sobre o ato de cantar. Como se admitisse que a voz é mesmo o maior depoimento que uma cantora pode dar sobre si mesma, Gachot não interrompe os números musicais e deixa que a arte fale por si mesma. Melhor: deixa que cante.
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Há, claro, depoimentos, alguns deles muito significativos, como o do ex-marido Gilberto Gil. Mas são aproximações, porque a própria Nana, quando lhe perguntam sobre o seu talento, não sabe o que responder direito. Diz apenas que, com poucos anos de idade, saiu cantando em casa, sem mais nem menos. Tem explicação? "Bem, a única que eu encontro é que nasci numa família profundamente musical, não é? Ninguém é filha de Dorival Caymmi e Stella Maris impunemente." Sim, porque desse casamento saíram Nana, Dori e Danilo, todos eles músicos.
Nana gosta de lembrar de como os pais se conheceram. Dorival ouviu uma voz cantando Último Desejo, de Noel Rosa, e encantou-se. Antes de se apaixonar pela moça, apaixonou-se pela voz. Era Stella. Nana se emociona com a lembrança. E começa a cantarolar o clássico de Noel. Quando termina, pergunto: "Você leva em conta outras interpretações para criar as suas? Por exemplo, a de Araci de Almeida para o próprio Último Desejo?" Nana diz que não se preocupa muito com isso. "Pode ser que eu tenha recebido a influência da Araci através da minha mãe, que conheceu Último Desejo através dela, tudo é possível".
Mas diz que em geral não estuda as interpretações de outras cantoras. Seu "método", se assim podemos chamá-lo, é outro. "Conheço muito bem a maior parte dos compositores que interpreto; assim, tento me colocar no lugar deles, sentir com os seus sentimentos", diz.
Nana faz o que chama de "laboratório", no sentido teatral do termo. Estuda a canção. Medita. Interioriza. Tenta entender o sentimento de quem a fez. Sentimento: a palavra é recorrente na conversa. Nana sabe que sua voz desperta admiração, mas, muito mais que isso, é capaz de tocar em cordas muito profundas da sensibilidade alheia. Talvez isso aconteça em razão da empatia profunda em relação àqueles cujas obras ela interpreta. Seja o Milton Nascimento de Cais e Ponta de Areia, seja o Toninho Horta de Beijo Partido ou o Vinícius de Moraes de Medo de Amar.
Há também a técnica. O estudo de música que a família Caymmi toda recebeu, inclusive as aulas de piano com a mesma professora do futuro concertista e já menino prodígio Nelson Freire. "O Nelsinho já era tão bom naquela época que deixava a gente envergonhada; a vontade era ficar atrás da porta, só ouvindo ele tocar", lembra-se. Essa educação em alto nível deixou também um gosto permanente pela boa música. "Quase só ouço clássico", diz. "Vim no carro escutando Debussy".
Sim, não é difícil ouvir ecos de Debussy, mas também de Villa-Lobos e Nepomuceno na voz de Nana. Há também um resto de sentido trágico, que evoca Dalva de Oliveira e Dolores Duran. Talvez, lá no fundo, dialogue com Edith Piaf ou Billie Holliday nesse encaixe perfeito entre o que se canta e como se canta. Por exemplo, na magnífica Canção em Modo Menor, de Tom Jobim, nos versos "...E foste para nunca mais", sua voz descai, em escala descendente, como se tombasse para o abismo. E caímos junto com ela, por que o "nunca mais" soa como o "never more", do corvo de Poe, com seu toque fúnebre e irremediável. Por sorte, ela nos dá a mão e nos reergue nos versos seguintes. Mas a impressão de queda e desamparo é muito forte e fica conosco.
Fala-se muito de música ao longo da entrevista - e existe assunto mais urgente? Mas Nana a encerra dizendo que o que mais sente falta, hoje em dia, não é tanto de boa música, mas de silêncio, bem dos mais raros no mundo contemporâneo. Não há música sem pausa.