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'Até o último homem' é guerra de Gibson em nome da fé

01 fev 2017 às 17:12

Lançado na última quinta-feira (26) no circuito brasileiro, "Até o último homem", de Mel Gibson, é mais um entre os nove filmes nominados ao Oscar deste ano disponível para avaliação do publico brasileiro.

Visto em estreia mundial na Mostra de Veneza de 2016, o filme de Gibson entregou seu recado logo de cara: o diretor por trás de "Coração Valente", "Apocalypto" e "A Paixão de Cristo" surpreendeu a todos com uma relevante volta por cima, depois de anos condenado pela indústria de Hollywood a purgar seus pecados, sendo confinado como vilão coadjuvante a artefatos irrelevantes como "Machete Mata" (2013) e "Os Mercenários 3" (2014). Pecados também extra cinema, com episódios pouco lisonjeiros de sua vida privada.


Dez anos após o exótico e hiper-realista "Apocalypto" (2006), Gibson decidiu, não sem dificuldades, retomar sua carreira por trás das câmeras. E o resultado é esta ambiciosa produção antibélica baseado na história real de Desmond Doss, jovem médico da Virginia que se tornou um dos heróis da batalha de Okinawa, durante a Segunda Guerra Mundial, ao salvar a vida de 75 soldados sem que fosse preciso disparar um só tiro, já que suas fortes crenças religiosas o impediam de matar outro ser humano – além de respeitar o sabá, como membro da Igreja Adventista.


"Na paz, os filhos enterram seus pais; na guerra, os pais enterram seus filhos." A dolorosa reflexão, dita por um dos jovens soldados em "Até o Último Homem" descreve com devastadora propriedade as atrozes consequências de todo conflito bélico, estes mesmos em que não há vencedores ou perdedores, mas somente mortos e sobreviventes que terão que aprender com os horrores vividos.


Depois de uma primeira metade feita mais de lugares comuns e bom comportamento de arquétipos dos dramas de guerra hollywoodianos, o segundo é puro terreno minado e onde Gibson mostra a que veio. Seu teatro de guerra é barbárie explicita, o mais dilacerante gore. O pelotão que escala a vertical Escarpa Maeda, ou Hacksaw Ridge (título original do filme,) e se lança na carnificina incorpora à perfeição a conhecida e nada sutil agressividade de Gibson como cineasta. E faz emergir a brutalidade sem maquiagem dos horrores da guerra. Não se podia esperar nada menos do homem que provocou desmaios com sua cruenta visão do calvário de Cristo, tão carnal e sangrenta que roçou o sadismo.


Exaltação do Pesadelo


No filme de agora, as imagens, predominantemente desagradáveis, parecem justificar-se como recurso expressivo para exaltar o pesadelo de algumas centenas de homens impelidos a matar em nome da pátria noite e dia. A guerra deve ser o mais parecido àquilo que Gibson oferece em suas sequências de batalha, com certeza as mais realistas e melhor filmadas desde que Spielberg recriou em 1998 o desembarque da Normandia em "O Resgate do Soldado Ryan". É lá no alto daquele platô, em pleno inferno onde ianques e japoneses se dilaceram, que "Até o Último Homem" marca afinal a diferença entre grande cinema e apenas bom cinema.


Neste abismo de trevas, dor, sofrimento e martírio move-se o soldado Desmond na pele de Andrew Grafield, torturado por uma expressão que faz o espectador esquecer para sempre que ele foi um dia o Homem-Aranha...


Não há duvida de que Mel Gibson nos brindou aqui com um filme belo, emocionante e destinado à reflexão. O paradoxo é que o uso da linguagem da violência extremada está ligado à mensagem antibelicista, mas o contraditório funciona ainda mais letal neste discurso. O discurso do sem sentido da guerra em toda sua magnitude destrutiva. Tudo está no lugar certo: o roteiro é redondo e sem furos, o elenco inspirado e funcional, nível de produção impecável – aplausos dobrados à equipe de segunda unidade, que comandou a engenharia das longas e com certeza complexas sequencias de combate.

Uma pena que o filme tenha sido ignorado pelas exibidores locais em seu lançamento nacional.


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