Mulher

Violência obstétrica é normalizada e recorrente no SUS

04 abr 2021 às 16:15

Quase metade das mulheres brasileiras que têm seus filhos pelo sistema público de saúde são alvos de um tipo de agressão invisibilizada, a violência obstétrica. Apesar disso, não tem tipificação penal, não é reconhecida pelo Ministério da Saúde e segue sendo vista como um aspecto cultural do parto, com baixo índice de denúncias. Além disso, não há serviços de saúde específicos para quem sofreu esse tipo de abuso.


De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, 45% das gestantes atendidas pelo SUS no parto são alvos de maus-tratos. No total, 36% das mães passam por tratamento inadequado. E, apesar de todas as pessoas gestantes (incluindo homens trans) estarem sujeitas a maus-tratos, há um grupo de risco. São as negras, pobres, grávidas do primeiro filho, jovens e em trabalho de parto prolongado.


O estudo, que entrevistou quase 24 mil mães entre 2011 e 2012 e é a maior pesquisa sobre nascimentos já feita no país, considerou como violência obstétrica agressões verbais e psicológicas, tratamento desrespeitoso, falta de respeito durante exames e de transparência de informação, impossibilidade de fazer perguntas e de participar das decisões.


Tatiana Leite, doutora em saúde coletiva e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública, diz que a prevalência real pode ser maior.
"Quando a pergunta é só se a mulher sofreu violência, ela diz que não. Mas se é: 'Te amarraram? Te mandaram calar a boca?', ela diz que sim."
Isso acontece porque há uma percepção de que um certo nível de maus-tratos é normal no atendimento. Isso leva a uma cascata de problemas. O primeiro é que o não reconhecimento da violência faz com que poucas procurem ajuda.


Quando o fazem, diz a defensora Thais Sagin, de Mato Grosso do Sul, geralmente é em casos associados a erros médicos. Como o de Flávia Chaparro, 22, que, dias depois de parir Flora, encontrou dentro dela um bolo de gaze.


Ela conta que, além do erro, sofreu violência psicológica. "Não me corta! Não me corta!'", ela implorou, aos gritos, para que o médico não fizesse uma incisão em seu períneo, a episiotomia. Ele teria insistido, e as enfermeiras, a mandado ficar quieta. "Só que depois do parto ele ficou dizendo que meu órgão estava horrível porque eu não tinha deixado ele fazer o corte'", relata.


A episiotomia é usada em 56% dos partos no Brasil, e a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) é que o índice fique entre 10% e 30% dos partos.


Em uma diretriz de 2018, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) indica que os médicos procurem não fazê-la como primeira opção e sem o aval da parturiente.


O padrão se repete Brasil afora, e, sem legislação nacional, os casos ficam sujeitos a interpretação do Judiciário. "Quando há uma lesão na criança ou na mãe, o Judiciário atua para promover uma reparação. Mas quando é uma mulher cujo companheiro (a) foi proibido de entrar, aí o sistema não enxerga como violação", diz a defensora Paula Sant'anna, de São Paulo.


A reportagem solicitou dados a defensorias públicas do país, e só quatro os forneceram. A maior parte informou não conseguiu localizar essa violência. No Amazonas, foram 60 casos. Na Bahia, apenas 12 casos entre 2018 e 2020, em Salvador, o que a defensoria classificou como "clara subnotificação". No Rio Grande do Norte, são cinco em 2021. No Tocantins, foram 70 atendimentos entre 2020 e 2021–70% sobre o direito a quem a acompanhe, uma das poucas regras normatizadas por lei federal.


O medo do parto normal violento pode agravar outro problema. O número de nascimentos via cesárea, no Brasil, é de 55%, segundo o Ministério da Saúde. A recomendação da OMS é fique em torno de 15%.


Com o cenário exposto pelos dados, não é surpreendente que se encontre, em grupos de grávidas e mães no Facebook, mulheres aconselhando a cirurgia a outras e dizendo terem medo de serem forçadas ao parto natural.


"A vivência que muitas mulheres já tiveram ou que suas mães ou amigas tiveram faz com que a cesárea seja vista como uma opção mais segura", diz Raquel Marques, diretora da ONG Artemis, cujo foco é a violência obstétrica.


Porém, ela não é garantia de respeito. Grávida de Vinícius, hoje com sete anos, Juliana Estevam, 33, foi para uma cesárea de emergência e o pai da criança foi impedido de acompanhá-la. Insistiram e ela ouviu da médica: "Se ele quer tanto ver o filho dele ser intubado, deixa entrar".
Os efeitos não terminam no parto ou em sequelas físicas. Estudos feitos por Leite mostram que os alvos têm mais chance de desenvolverem depressão pós-parto e de evitarem consultas médicas importantes.


A atualização das equipes de saúde e mudança no ensino é preconizada como uma forma de diminuir o uso de procedimentos ultrapassados, como a manobra de Kristeller (utilizada em 37% das parturientes, segundo a Nascer no Brasil), em que um profissional sobe na barriga da mulher e a empurra, sejam abandonados nos hospitais.


"As mulheres são entendidas como um órgão, como um útero, da faculdade até a prática corriqueira", diz Valdecyr Herdy Alves, coordenador da comissão de saúde da mulher do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).


Mas a própria terminologia da violência obstétrica é alvo de debate. Em 2019, o Ministério da Saúde vetou o uso da expressão, alegando que ela implica que há dolo dos médicos.


É a visão do médico Sergio Costa, da Febrasgo que diz que é um termo "contaminado por preconceitos". Ele diz que não se pode considerar o uso de manobras obsoletas, como a de Kristeller, como violência, porque não há intenção do profissional de causar dano.


E há uma parte da violência que advém de deficiências institucionais, como equipes insuficientes, falta de insumos e equipamentos. Essa precariedade foi relatada por médicos de hospitais públicos de São Paulo ouvidos pela reportagem.


Do lado jurídico, as defensoras apontam que o trabalho de informação sobre direitos no parto e de visibilização dos casos é importante. A Defensoria de Mato Grosso do Sul viu chegar mais afetadas após a denúncia de Flávia, diz Sagin. "Estamos atendendo outras seis mulheres. A gente sempre soube que havia mais casos, mas elas não nos procuravam. Esperamos que apareçam ainda mais."

A reportagem procurou o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina, mas não obteve resposta.


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