"Nossa, isso é muito Black Mirror" virou o comentário que se faz quando a realidade fica assustadora. Pois com Bandersnatch, o longa que entra no ar hoje (28) na Netflix, o público agora vira cúmplice dessa realidade. O filme é o primeiro do serviço de streaming a propor a interatividade para adultos - a Netflix já tinha lançado produtos do tipo para crianças. "É como se o espectador estivesse dentro de Black Mirror", disse o criador da série Charlie Brooker em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, na sede da Netflix em Los Gatos, Califórnia. É o usuário quem determina os caminhos do personagem principal, Stefan (Fionn Whitehead, de Dunkirk), que bola o videogame interativo Bandersnatch, em 1984. "No centro do filme está a noção de que alguém percebe estar sendo controlado, e nós percebemos que somos nós. Era uma história que só poderia ser feita com a interatividade e parecia muito a cara de Black Mirror", completou Brooker.
O Estado de S. Paulo foi um dos poucos a ter acesso ao filme antes da estreia. O teste foi feito num iPad, mas a interatividade vai funcionar em TVs novas (com controle remoto), consoles de games, computadores, tablets e celulares com Android e iOS, mas não na Apple TV, Chromecast e aparelhos mais antigos em geral. Quando chega o momento de fazer uma escolha, uma barra aparece na parte de baixo da tela com as duas opções, e o espectador tem de 10 a 15 segundos para selecionar uma delas. A primeira pergunta é bem simples - e uma espécie de piada com a interatividade: o pai de Stefan, Peter (Craig Parkinson) pergunta qual cereal matinal Stefan quer comer. Em seguida, o usuário pode selecionar que compilação musical o protagonista vai ouvir em seu walkman. Mas, com o tempo, as escolhas vão ficando mais sofisticadas.
Stefan fala ou não com a psicóloga dra. Haynes (Alice Lowe) sobre um evento traumático em sua vida? Aceita ou não o emprego oferecido por Tucker (Asim Chaudhry) para desenvolver Bandersnatch, na mesma empresa onde trabalha também o gênio dos games Colin (Will Poulter)? Há escolhas de vida e morte.
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A Netflix estima em mais de um trilhão de variações na história, o que não significa que sejam caminhos ou linhas narrativas completamente diferentes. Isso resultou em muitas horas filmadas. Mas o caminho em default tem cerca de 90 minutos. Oficialmente, há cinco finais possíveis, mas com variações de cada um. "Há um debate porque não conseguimos concordar com o que constitui um fim", analisou Brooker. Em sua cabeça, havia outras dúvidas. "Como funcionam os spoilers nesse caso? Não sabemos nem se dizemos 'você viu' ou você 'jogou'?" A verdade é que tudo isso alimenta mais discussões, que é o sonho de qualquer serviço de streaming ou canal de televisão. No dia da apresentação à imprensa, os jornalistas não conseguiam parar de conversar sobre o que tinham visto, o que deve se transferir para o Twitter e o Reddit a partir de hoje.
Para manter tudo sob controle, a empresa desenvolveu um software próprio. Mas esse não foi o único desafio apresentado por Bandersnatch, dirigido por David Slade. Tecnologicamente, foi fazer com que não houvesse buffering nem pausa antes e depois de uma escolha, além de fazer funcionar no maior número de aparelhos possível. "Também temos de ensinar as pessoas a ficar segurando o controle remoto, no caso da televisão", explicou Carla Engelbrecht, diretora de inovação de produto da Netflix. Não deve ser difícil para uma empresa que ensinou as pessoas a assistir a todos os episódios de uma só tacada. "Nós somos pioneiros da TV na internet, então queríamos inovar uma vez mais e levar o storytelling para o próximo estágio, oferecendo uma experiência mais visceral para o usuário", afirmou Todd Yellin, diretor de produto. No futuro, ele sonha usar a tecnologia desenvolvida para Bandersnatch em comédias, romances, filmes de terror.
Narrativamente, também não foi nada fácil fazer Bandersnatch. "Não queríamos que a interatividade fosse apenas um truque", contou a produtora executiva Annabel Jones. "Queríamos apresentar opções que fizessem sentido para o personagem. Nossa premissa central era um jovem experimentando muitas verdades diferentes, ou sem certeza do que era a verdade", lembrou ainda Jones.
A maior dificuldade de todas foi abdicar do controle. "O roteirista, o diretor, o produtor sempre estão tentando fazer o espectador focar em algo específico", disse Brooker. "E quando você não tem mais isso, é libertador e desnorteante." A verdade é que, em alguns momentos, certas escolhas resultam em becos sem saída, ou seja, os criadores sutilmente avisam que você tomou o caminho errado. Então, como pergunta Annabel Jones, "será que o espectador está mesmo no controle ou tem a ilusão do controle?". Mais Black Mirror, impossível.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.