Algumas coisas na vida são tão óbvias que nem precisam ser contadas. Os clichês do cinema, por exemplo, podem ser adivinhados num piscar de olhos. A música sombria nos momentos de tensão, o suspiro da mocinha quando o homem de sua vida aparece, o olhar galanteador dele, possível de imaginar mesmo antes da câmera encontrar seu rosto.
Mas mesmo conhecendo todos esses recursos, a magia acontece. Lisbela reconhece todos os mecanismos, usados principalmente nos filmes antigos, mas ainda assim não perde uma sessão dos seriados em preto e branco exibidos diariamente no único cinema da pequena cidade onde mora, no nordeste do Brasil.
Lisbela é a personagem de Débora Falabella no filme ''Lisbela e o Prisioneiro'', que estréia nesta sexta-feira no País com a surpreeendente distribuição de 300 cópias (só para se ter uma idéia, o ótimo ''O Homem do ano'', de José Henrique Fonseca, acaba de estrear com 20 cópias distribuídas).
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Dirigido pelo pernambucano Guel Arraes, ''Lisbela e o Prisioneiro'' tem roteiro assinado pelo diretor em parceria com Jorge Furtado e Pedro Cardoso. Um time ''de primeira'', diga-se de passagem, mas eles não são os únicos a conferirem uma boa premissa de qualidade ao filme.
A maioria do elenco que integra o longa fazia parte da peça homônima que ficou anos em cartaz no Brasil. A experiência no teatro - depois repassada para um especial para televisão - foi responsável por conferir o tempo exato que uma comédia necessita.
Baseado na obra do também nordestino Osman Lins, o filme conta uma história simples, com recursos que se confundem com os clichês dos filmes antigos assistidos religiosamente por Lisbela. Talvez seja esse seu principal mérito, já que Arraes costuma tratar de temas simples explorando sempre as melhores possibilidades.
No filme, Arraes mais uma vez lança mão de uma ambientação ''kitsch'' extremamente brasileira, caricata até. Os personagens podem ser interpretados simplesmente como o mocinho, a mocinha e o bandido presentes em qualquer história. A diferença aqui é que essa é uma história muito bem contada.
Lisbela, órfã de mãe, é criada pelo pai, o delegado da cidade (André Matos) e está prestes a se casar com Douglas (Bruno Garcia), um rapaz tão bom que estudou até no Rio de Janeiro e carrega um sotaque forçado de carioca. Tudo parece perfeito para o casal até Leléu (Selton Melo) aparecer na cidade.
Leléu é um artista itinerante que assume as mais diversas personalidades para ganhar a vida. Por suas andanças, já vendeu ''elixir da saúde'' para salvar as mulheres da inércia dos maridos, já foi trapezista, vidente e até Cristo. Mas todas essas identidades tinham uma coisa em comum: o desejo de conquistar as donzelas e senhoras da cidade por onde passava.
Mas uma delas, Inaura (Lavínia Cavendish), tem um marido não tão condescendente que, para azar de Leléu, descobre a traição. Na condição de marido traído, Frederico Evandro (Marco Nanini) - coincidentemente o matador mais temido da região - promete não sossegar até encontrar o traidor. As pistas de Evandro, porém, não são das melhores e como Leléu coleciona identidades, o encontro dos dois fica cada vez mais difícil. Até que, nessas coincidências do destino, Leléu aporta na cidade de Lisbela e por ela se apaixona, prometendo mudar de vida para conquistá-la. No mesmo território está o matador, na procura desenfreada por Leléu.
Sem saber a verdadeira identidade do artista galanteador, Evandro jura um favor a ele, depois de ser salvo das garras de um touro feroz e promete matar qualquer inimigo seu. Quando sabe que um matador está na cidade à sua procura, ameaçando seu futuro e de seu verdadeiro amor, Leléu cede ao pedido do novo amigo e pede para ele matar o ''tal'' Frederico Evandro, sem desconfiar que se trata da mesma pessoa.
As nuances do filme, que esbanja o colorido brasileiro, se confundem com as dos seriados em preto e branco que Lisbela assiste com tanta frequência. O resultado é que, assim como as reações da personagem Lisbela no cinema, o espectador de ''Lisbela'' também começa a torcer pelo mocinho, bandido ou mocinha, ou seja lá para quem a sua inclinação determina. O certo é que malvados ou bondosos, todos os personagens cativam.
Além da boa química do elenco, o filme também conta com uma trilha sonora impecável, criada por João Falcão. As canções são interpretadas por Caetano Veloso, Elza Soares, Jorge Mautner e também por algumas combinações insólitas, como o veterano Zé Ramalho em parceria com Sepultura.
O filme foi exibido há duas semanas em sessão fechada em Curitiba, com direito a presença dos atores Lavínia Cavendisch e Tadeu Mello. Mello só tinha aparecido até então no cinema em personagens menores, como em '' Xuxa e os Duendes'', e é mais conhecido atualmente na sua participação em ''A Turma do Didi''.
Em Lisbela ele interpreta o Cabo Citonho, o ajudante do delegado que não se cansa de se meter em confusões. ''O personagem mudou a minha vida'', diz o ator.
Para ele, a ingenuidade do Cabo Citonho - já interpretado por ele no teatro - cativa as crianças e faz todo o tipo de público torcer por ele. ''Trabalhar com Guel é uma facilidade, é como seguir uma partitura musical'', conta o cearense que começou a fazer teatro aos 15 anos.
O filme todo, aliás, tem essa ingenuidade que cativa, mas se alguém quer uma dica para assisti-lo, arranque da memória as personagens chatinhas de Débora Falabella nas novelas (a viciada Mel, de ''O Clone'' e a atual politicamente correta Leo, em ''Agora é que são elas''). Em ''Lisbela e o Prisioneiro'' ela é bem mais agradável.