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Fahrenheit 451 – Ray Bradbury (Série Distopia 1)

31 dez 1969 às 21:33
Fahrenheit 451 - Ray Bradbury - Reprodução
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A inquisição na Idade Média destruiu livros que considerava de feitiçaria. Os nazistas, na metade do Século XX na Alemanha, incineraram livros perigosos ao regime. O Brasil militar do AI-5 legitimou a censura contra obras de arte.
A história humana é trilhada pela destruição daqueles que são o objeto maior dessa coluna: os livros.

Imaginemos, portanto, um futuro quando os bombeiros não apagam incêndios, mas os provocam. É a simples genialidade de Ray Bradbury em olhar desnaturalizadamente para a palavra em inglês fireman e ver nascer de uma mesma ortografia o sentido novo e oposto.

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No futuro quando se passa o enredo de Fahrenheit 451 – que é a temperatura na qual o papel entra em combustão – o trabalho dos bombeiros é queimar os livros. Qualquer um deles. A palavra escrita é proibida e os livros são caçados, apreendidos e incinerados. Em uma belíssima passagem do livro, uma mulher velha se recusa a abandonar seus livros tacando fogo em toda sua biblioteca, sua casa e em si mesma.

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Esse é um dos momentos decisivos da odisseia de Guy Montag, o herói do texto. Montag fede a querosene e se encanta com as labaredas: é um bombeiro.

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Estão lançados à página os elementos dessa distopia publicada originalmente em 1953 – embora o livro tenha nascido em uma revista de ficção científica, em 1947, e qual adolescente, foi crescendo até não caber mais na cama dos contos e precisar de um romance pra se acomodar.


Mas peraí, distopia? Antes de continuar, elucido:

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Distopia é o inverso de uma utopia. Calma, que tem mais: o conceito de utopia popularizou-se a partir do livro de Thomas Morus chamado (adivinhe?) Utopia, no qual se contava a história de uma comunidade humana racional e progressista, onde tudo dava certo. O referencial principal de Morus foi Platão e o seu livro A república.


As cidades míticas de Atlântida e Eldorado são frequentemente consideradas utopias. Com o passar do tempo e do uso, o termo ganhou conotação de "meta interessante, porém impossível de se atingir".

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Uma distopia é uma realidade racional e progressista onde a sociedade e suas relações não deram certo como se imaginava. Anthony Burgess, autor de Laranja mecânica, prefere o termo cacotopia, mas o mais comum, pelo menos cá, em língua de Camões, é distopia mesmo.


Em Fahrenheit 451 a comunicação verbal escrita foi substituída pela audiovisual. A ideia é que a escrita obriga a refletir e por isso leva à infelicidade. A opção é pela felicidade alienada transmitida pela televisão. Aliás, o aposento das "telas" é o quarto principal da casa (mórbida semelhança com a sua casa?) com várias telas ligadas ao mesmo tempo, numa espécie de surround visual. O sonho maior de Mildred, esposa de Montag, é ter sua quarta tela.

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Esse me parece o elemento essencial do texto, mas existem outros exemplos de progresso científico e de engenharia: estradas são largas pistas onde os carros andam em altíssima velocidade. Existem cães-robôs capazes de distinguir o odor de um homem e de outro com precisão.


A medicina também é bastante avançada: no começo do livro, Mildred toma mais calmantes que devia (tentativa de suicídio?) e tem, em uma operação a Keith Richards, todo o sangue de seu corpo substituído por sangue não intoxicado.

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Quanto a enredo, é a história da transformação de Montag em herói: de bombeiro que sente prazer em queimar a cidadão questionador e perseguido. Dois elementos são essenciais para a mudança de Montag: um livro roubado de uma missão de apreensão e destruição; e Clarisse, uma vizinha com uma visão diferente do mundo, atropelada por um carro em alta velocidade. É o progresso atropelando a visão divergente.


Bradbury usa esse romance para fazer um elogio à leitura em detrimento aos meios modernos de comunicação visual, sobrando em uma ou outra passagem, até para as histórias em quadrinhos, consideradas menores diante dos livros "de verdade". Irônico imaginar que o livro foi adaptado para o cinema por François Truffaut.

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Acho a posição de Bradbury apocalíptica (como poderia dizer Umberto Eco), como quando se diz que os bate-papos via internet vão acabar com a língua falada, como se dizia nos anos 90 que os videogames acabariam com a inteligência, como se dizia que o cinema acabaria coma leitura, que o jazz acabaria com a música, que a imprensa de Gutemberg acabaria com o livro, e que lá atrás, antes de Cristo, a literatura escrita acabaria com a memória humana.


Do ponto de vista da forma, temos um narrador em terceira pessoa que acompanha o herói, nos apresentando seus conflitos, reações e questionamentos interiores. Entre os muitos méritos de Bradbury como escritor, talvez o maior seja sua capacidade de controle do andamento narrativo e do desenrolar dos fatos, como a desacelaração da bomba nesta passagem, no final do livro:

"Vi-a num quarto de qualquer hotel, com a fração de segundo que lhe restava e as bombas a um metro, cinquenta centímetros, cinco centímetros do edifício. Via-a inclinando-se para as grandes paredes animadas cintilantes de cores onde a "família" falava, falava, se dirigia a ela, onde a "família" pairava, tagarelava, pronunciando o seu nome, sorrindo-lhe, não dizendo uma palavra da bomba que se encontrava a três centímetros, meio centímetro do telhado do hotel. Mildred, inclinada para a parede como se a sua fome devoradora de imagens lhe permitisse descobrir o segredo da sua insônia e do seu mal-estar. Mildred, curvada pra frente ansiosa, nervosa, prestes a mergulhar, a lançar-se nessa vaga imensa de cores, para se afogar no meio de suas delícias cantantes."


O enredo é muito bem construído, e toda a narrativa e os personagens conduzem para a proposta do autor, inclusive, para seu brilhante final – que obviamente, não contarei aqui. Bradbury foi muito competente em criar o que pretendia, apesar de sua proposta algo ingênua de que a leitura resolveria todos os problemas do mundo (ingenuidade que compartilho), e que seria censurada pelos detentores do poder.


Ora, não há necessidade de censura; pensemos no Brasil: o livro é caro, os leitores criaturas estranhas e o senso comum, desinteressado.


No futuro de Fahrenheit 451, a leitura era proibida, no presente em que estamos, as pessoas não a desejam.

Sugestão de leitura:
Utopia (Thomas Morus), Não verás país nenhum (Ignácio de Loyola Brandão), 1984 (George Orwell), Crônicas marcianas (Ray Bradbury).


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