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A poesia é o mundo (por Flávia Quintanilha)

22 mai 2022 às 06:02
Flávia Quintanilha -
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Agora, enquanto tento organizar as palavras e os pensamentos para elaborar este texto, olho para fora da sala – pela porta de vidro que se mantêm sempre berta em minha frente – e  vejo do outro lado do quintal, no escuro do canteiro, iluminar uma íris que amanhã estará aberta. Ela, que terá sua vida consumida em menos de 12 horas. Tento fugir do tema da brevidade da vida, mas ele está e se configura como reflexão paralela ao que quero mostrar neste texto.

Tudo começou com o livro que li ano passado, “Quando a casa queima”. Fazia tempo que um texto não me pegava tão profundamente. Ouso dizer que este é o texto mais profundo e revelador que li em minha vida. Não por ter apresentado algo novo, mas pela articulação feita, a exposição tão precisa que Giorgio Agamben revela ali. É ele sem dúvida o motivo deste texto e a razão de tantos dias pensando sobre filosofia e poesia. Sem pretender contar o livro aqui é importante que você saiba que para seguir adiante na leitura desta crônica teremos que fazer um pacto anterior: aceitar que tudo o que se constrói pela linguagem no intuito de esclarecer ou explicar algo é uma mentira. Em outras palavras não há verdade em discursos ou narrativas, pois elas são construções feitas pelo ponto de vista de quem fala.

Você deve estar se perguntando: se tudo é mentira como posso aceitar esse pressuposto como verdadeiro? É, ficou difícil assim. Também me fiz esta pergunta. Vamos tentar de outra maneira: a verdade só pode ser apreendida se abandonarmos conceitos e fórmulas. Sem forjá-la. Assim, se chamarmos a filosofia e a poesia para dar o aval neste ponto podemos afirmar que somente a poesia é capaz de  expressar a verdade. Isto porque a poesia é linguagem primeira que estava presente na manifestação original do pensamento humano. A filosofia quer criar o mundo. A poesia é o mundo.

Pensando assim, podemos aceitar a tese de Agamben de que não há história da verdade, mas apenas a história da mentira. Estamos todo este tempo de civilização criando conceitos e buscando explicação para todas as coisas e esquecemos de testemunhar a vida. De ser parte do mundo como o que é e não como quem age. “Não existe testemunhas vivas: testemunhar significa sobretudo morrer. Por isso, a testemunha não pode mentir, o falso testemunho não é um testemunho” é apenas mais uma construção pela linguagem. Isto se dá no momento em que nos afirmamos no mundo. A cada instante que afirmo o “eu” abandono a língua mesma e me entrego ao vórtice da elaboração das ideias, da construção de um discurso que está e deve estar cheio de significados. É o abandono da verdade para ir em busca de sua construção. Sempre que me vejo neste movimento percebo que habita em mim uma significância e um vazio . Uma dicotomia existencial que não posso abandonar, mas cada um desses lados me abandona vez ou outra. É como se a própria existência fosse dada pela dicotomia verdade-mentira num colorido nietzschiano sobre o tecido da linguagem e do pensamento. É o dançar entre meu dialeto e minha intriga. Quando me abandono sou poesia e vivo o dialeto que é minha essência e quando penso, escolho, sinto, vibro realizo minha inevitavelmente minha existência nessa intriga que é meu narrar no mundo. Não posso fugir.

Quem sabe esteja aí a raiz deste meu cansaço, desta impossibilidade de me definir categoricamente e de me abandonar de uma vez por todas. É o inevitável caminho da vivenda humana em sua finitude indistinta e infinitude do porvir.


Flávia Quintanilha é doutoranda em filosofia pela Universidade de Coimbra. Atua como colaboradora no Instituto de Estudos Filosóficos na mesma instituição e é editora associada na Philosophy International Journal. Publicou os livros Aporias da justiça e A mulher que contou a minha história.



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