Prosaico

A VOZ PROFUNDA

27 mai 2014 às 10:58

Escritores têm voz exclusivamente deles. Um escritor está maduro quando houver uma identificação imediata entre o texto e o autor. Inconfundível.

Há outro lado, no entanto. Um escritor tem sua própria voz, mas também ouve uma voz. Essa voz misteriosa expressa as infinitas experiências emocionais que viveu e/ou vive. E se expressam na escrita. Independe da idade. Às vezes, poetas jovens experimentam turbilhões de sentimentos, como se um espirito inquieto acelerasse a velocidade das experiências.


Exemplos não faltam. Vamos lembrar apenas de Augusto dos Anjos, uma existência de trinta anos apenas que deixou uma herança poética única na vida brasileira. Quem não conhece seus versos cheios de estranheza nas palavras e imagens? A tradução perfeita do desalento, da melancolia:

"Toma um fósforo, acende um cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!" (Versos Íntimos)

Há quem diga que os escritores guardam certa mágoa de Freud, por que o doutor escancarou essa voz misteriosa, guardada em segredo desde sempre, como um tesouro da escrita. Freud a batizou de inconsciente. Daí as múltiplas linhas que interligam a literatura e a psicanalise, ou outras terapias de fala.

É na expressão dessa voz que um universo escondido se manifesta. O fogo misterioso que dá ao escritor a condição de ser escritor. Augusto dos Anjos na sua poesia mergulhada em porões, cheios de imagens tenebrosas, sombrias, criou um canal de expressão. Foram por esses caminhos que os seus obscuros demônios, enjaulados em regiões profundas dele mesmo, puderam gritar.

Dizer da putrefação do mundo, dos vermes que devoram nossa carne. Cabe ao escritor, ouvir seus porões, dizer o indizível, percorrer territórios jamais visitados.

Em um certo sentido, escrever é dar voz às múltiplas vozes. Permitir a evasão dos gritos da profundidade, em muitos sentidos, é evitar a loucura da superfície.


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