Prosaico

DE VOLTA AO COMEÇO

19 set 2014 às 10:57

Dois traços diagonais, como um X assimétrico, trincavam o espelhinho pendurado na parede da salinha. Esse espelhinho, ao lado de um retrato desbotado, era o único apetrecho de vaidade na casa. Ela olhava, atenta, as imagens de si mesma multiplicadas nos quatro triângulos formados pelo X. Detinha-se em cada parte, tentando escolher uma entre as quatro possíveis. Esse era o desejo: escolher-se entre tantas dela mesma e resistir às impossibilidades de escolha da sua própria vida.
Escovou os cabelos várias vezes, demorou-se a olhar o contorno dos olhos, onde perigosamente algumas linhas se aprofundavam. Aos poucos, no entanto, percebeu que gostava do que via. Essa vaidade ingênua despertava nela uma sensualidade, que os filhos, a eterna carestia, os dias vividos no fio da navalha teimavam em enterrar. Passou as mãos nos cabelos morenos e os sentiu macios, cheirosos. Acariciou o colo, olhou-se de perfil. Sentiu-se feliz e bonita, uma sensação quase desconhecida. Ou melhor, uma sensação quase esquecida pelos anos de cotidiana espera pela volta do marido.

Até então só restara a saudade aguda nas noites, quando clarões de memória mostravam o corpo dele, seco, desfalecido do cansaço da labuta e ela lembrava aquele seu andar decidido, como quem adquiriu uma súbita certeza: a de que achará seu lugar ao sol. E as eternas promessas de volta, expressas nas cartas mal escritas, nos garranchos quase ilegíveis, ou nas remessas do dinheiro miúdo que chegava pelo correio de tempos em tempos. Quantos anos? Perdeu a conta.


Nesse momento, ela ouviu uma música vinda de algum lugar distante. As notas se perdiam, mas conseguia ainda ouvir a voz de um cantor afinadíssimo. O som chegava defeituoso e belo ao mesmo tempo. Como ouvir um respirar humano sob escombros. Onde tudo é destruição, surge o alento de se ouvir os sinais de uma vida que resiste, alheia aos destroços da superfície. Cantarolou baixinho, completando a canção. Sentia-se mais forte naquele dia. A vida não lhe pareceu tão pesada. Não sabia explicar o que se passava consigo mesma. Algumas lágrimas, um sorriso na contramão. Os objetos e a paisagem cotidiana que seus olhos já cansavam de ver adquiriam uma tonalidade diferente. Um paradoxo sem fim: tudo era igual, tudo era diferente, como se um filtro se interpusesse entre seus sentidos e o mundo à volta.


Demorou-se olhando uma florzinha que insistia em crescer no chão ao lado da porta. Esbranquiçada, murcha, estava ali por pura teimosia. No entanto, ela a viu como uma minúscula maravilha. Sentiu seu perfume inexistente, apreciou suas cores baças, como se tivessem brilho de cegar.


Há dois dias veio o recado de que o marido voltaria para as festas de fim de ano. Por onde andaria agora?

Tempo de espera se mede com aperto de dor, de alegria e com o medo do que vai encontrar.


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