Comportamento

Brasileiro preso em Israel por ataque a colonos contrabandeia sêmen e tem gêmeos

12 jan 2022 às 15:11

O nascimento dos gêmeos Muhammad e Khadija em outubro foi recebido pela família como um ato de resistência. Seu pai, o palestino-brasileiro Islam Hamed, está entre idas e vindas há 18 anos na prisão.


Sem direito a visitas íntimas, ele, segundo parentes, contrabandeou seu sêmen para engravidar a mulher.


A família recebeu no mês seguinte, porém, uma notícia que desafiou o otimismo. Um tribunal militar israelense emitiu a sentença final sobre uma acusação que pairava sobre Hamed há mais de uma década. Ele foi condenado a 21 anos de prisão por disparar contra colonos, adquirir um fuzil de assalto do tipo M16 e militar na facção palestina Hamas, que Israel classifica como terrorista.


As duas novas –o nascimento dos gêmeos e a condenação– voltaram a dar ímpeto à campanha pela soltura de Hamed. Hoje com 36 anos, o brasileiro-palestino passou metade da vida entre prisões israelenses e palestinas. A família afirma que ele é vítima da perseguição da ambos os lados.


Ativistas traçam planos, e um dos primeiros passos será renovar a pressão nas autoridades brasileiras, incluindo a representação diplomática em Ramallah e as comissões internacionais do Congresso.


Hamed é filho de Nadia, 59. Ela nasceu em Catanduva, no interior de São Paulo, em uma família palestina. Em 1980, mudou-se para Ramallah para aprender árabe e os costumes islâmicos e se casar. Foi ficando.

Hoje, mora em Silwad, onde vive da terra e da costura. O filho Hamed nasceu em 1985, nos territórios palestinos, e tem nacionalidade brasileira. A família planeja registrar os gêmeos com as autoridades consulares, para que sejam brasileiros também.


Nadia diz que Hamed foi detido pela primeira vez em 2002, aos 17 anos, por lançar pedras contra as forças israelenses. Passou cinco anos na prisão. Mas ela hesita em falar daqueles dias. "Estava defendendo a causa palestina." Quando foi solto em 2007, Hamed noivou, tirou um diploma de eletricista e a carteira de motorista. Em 2008, porém, voltou a ser detido por Israel e ficou dois anos em prisão administrativa –categoria em que não é necessária a acusação formal.


Israel soltou Hamed em 2010. Poucos meses depois, porém, a Autoridade Nacional Palestina, que governa territórios na Cisjordânia, o prendeu. A acusação dessa vez era a de que Hamed havia disparado contra um veículo de colonos israelenses na Cisjordânia, deixando dois feridos.


O brasileiro passou cinco anos nas prisões palestinas. Durante 101 dias, fez uma greve de fome que, na época, preocupou a representação diplomática brasileira. Foi solto. Três meses depois, Israel voltou a detê-lo, pela mesma acusação de ter atirado em 2010 contra o veículo dos colonos. "Quanto mais eles são presos, mais sentem ódio dos israelenses, e isso vai aumentado", afirma Nadia.


Em nota enviada ao jornal Folha de S.Paulo, o Exército de Israel detalhou as acusações contra Hamed. Segundo o texto, o brasileiro e um cúmplice dispararam um fuzil contra um veículo israelense em 2010. Foram cerca de 20 disparos, em que duas pessoas ficaram feridas. A sentença de 41 páginas afirma que tiros feitos contra carros são um dos maiores riscos à vida de colonos e, portanto, requerem punição severa. Além da prisão, Hamed terá que pagar o equivalente a mais de R$ 100 mil de multas e compensação às vítimas.


A mãe descreve Hamed como parte da resistência palestina à ocupação israelense. A fundação de Israel, em 1948, envolveu a expulsão e fuga de cerca de 700 mil palestinos. Desde que Israel tomou a Cisjordânia na Guerra dos Seis Dias, em 1967, o país administra esse território com seu Exército.


Hamed viveu na sua infância a Primeira Intifada, levante popular palestino travado de 1987 a 1993. Depois, viveu também a Segunda Intifada, de 2000 a 2005, marcada por atentados terroristas e centenas de mortes em ambos os lados. "Eles crescem com o Exército entrando na cidade, com bomba de tudo quanto é tipo. Um horror. As crianças crescem com raiva, mesmo."


Nadia diz que o filho a princípio resistiu à ideia de contrabandear o sêmen para fora da prisão. Essa tática existe há uma década, ali. Os envolvidos preferem não dar detalhes, dada a natureza delicada da operação. Em geral, envolve retirar o sêmen de maneira secreta da prisão e levá-lo para uma clínica de fertilidade. Dois membros de cada família precisam ser testemunhas. "Veio um menino e uma menina."


O caso de Hamed é um entre tantos outros semelhantes, na região, após décadas de conflito. O fato de ele ser brasileiro tem atraído a atenção de ativistas do outro lado do mundo, entre os quais a jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh, amiga da família e parte da campanha.


Misleh já advoga por Hamed há anos. A campanha tinha esfriado, afirma, mas "a chegada dos gêmeos pode sensibilizar as pessoas para a realidade de uma família vivendo uma situação dramática". "Só que é difícil, agora, porque estamos com as portas fechadas com esse governo." A gestão de Jair Bolsonaro tem se mostrado pouco aberta aos palestinos –em 2018, o presidente, então candidato, chegou a descrevê-los como terroristas, ao defender o fechamento da embaixada em Brasília.


Questionada sobre as acusações feitas contra Hamed, Misleh afirma que "nunca foi provado nada". Ela diz também que é necessário contrastar as ações dele com a realidade de sua vida. "Palestinos vivem em um regime de apartheid em que crianças são presas por jogar pedras em tanques", afirma. "A resistência é legítima. Quem comete os crimes é a ocupação israelense."


Consultadas pela reportagem, as autoridades diplomáticas brasileiras afirmaram acompanhar o caso e reforçaram a disposição em auxiliar a família. Como Hamed foi julgado como palestino, por um tribunal militar, parece haver pouco espaço para a soltura.


A mãe dele afirma que, caso Hamed seja solto um dia, prefere que ele deixe sua terra-natal -apesar da dor de viver longe do filho. "Eu queria que o Hamed fosse para um outro país. Se ele vier para cá, ele não vai ser livre. Ele vai ter problemas com as autoridades palestinas e com os israelenses também", diz.

"Mas eu quero que ele viva livre, como qualquer ser humano."

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