Cerca de 400 mil consumidores brasileiros compraram o primeiro carro zero no ano passado, número equivalente ao total de veículos vendidos no Chile, Colômbia e Venezuela, juntos. Os "entrantes" no cobiçado mercado automobilístico, na avaliação de analistas, pertencem principalmente à chamada nova classe C, constituída por pessoas que melhoraram a renda salarial.
Elas são responsáveis, em grande parte, pela continuidade do crescimento das vendas de automóveis, mesmo com a tentativa do governo de frear o consumo. Embora sejam dados parciais de 2010, obtidos em pesquisa feita em conjunto pelas montadoras, analistas acreditam que continuarão a ser replicados neste ano. Janeiro e fevereiro bateram recorde para esses meses, com 144 mil e 274 mil unidades vendidas, respectivamente.
O mercado conta ainda com o reforço dos consumidores veteranos que estão trocando mais cedo de carro - e por modelos mais caros. No ano passado, 32,1% dos automóveis comerciais leves vendidos no País custavam de R$ 30 mil a R$ 40 mil. Em 2009, essa faixa respondia por 24,5% das vendas. Já os modelos mais baratos, até R$ 30 mil, eram 37,3% do mercado, fatia que caiu para 25,3%. No alto da pirâmide, a fatia das vendas de carros entre R$ 90 mil e R$ 100 mil saltou de 1,3% para 5,2%.
Leia mais:
Um terço das famílias brasileiras sobreviveu com renda de até R$ 500 por mês em 2021, mostra FGV
Taxa de desemprego no Brasil cai para 9,8%, segundo IBGE
Termina nesta terça o prazo para entrega da declaração do Imposto de Renda
Número de inadimplentes de Londrina cai 14% em abril, segundo dados do SPC
Stephan Keese, da consultoria Roland Berger, vê duas tendências paralelas no mercado brasileiro: o crescimento do número de pessoas que compram o primeiro carro zero, principalmente na classe C, e o aumento do valor médio gasto na compra, em especial entre as classes A e B. Em 2006, a média era de R$ 29 mil. Hoje está em R$ 40 mil.
Para o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Cledorvino Belini, o aumento da massa salarial, maior confiança do consumidor e "carros mais baratos" estão movendo o mercado. Segundo ele, nos últimos 12 meses os preços dos automóveis subiram 1,5%, segundo a Fipe, enquanto a inflação medida pelo IPCA ficou em 6%. "Pelo mesmo índice, o preço dos carros caiu 1%", informa.
Pesquisa de intenção de compra para o período de janeiro a março feita pelo Programa de Administração do Varejo da Fundação Instituto de Administração (Provar/FIA) e pela Felisoni Consultores Associados aponta aumento de 5,3% em relação ao primeiro trimestre de 2010 no número de pessoas que pretendem comprar carro. "O valor médio que elas pretendem gastar subiu 11,5%", informa o presidente do conselho do Provar, Claudio Felisoni de Angelo.
Para ele, as medidas de contenção ao crédito devem ter efeitos mais significativos no mercado a partir do segundo trimestre.
Drible no pacote. As medidas levaram ao aumento dos juros nos financiamentos superiores a 24 meses, principalmente naqueles em que o consumidor não precisa dar entrada no ato da compra, justamente os mais procurados pelos consumidores de menor renda. Os juros médios para financiamentos aumentaram de 1,28% em dezembro para 1,60% ao mês, calcula Felisoni.
Montadoras, concessionárias e financeiras, no entanto, estão adotando alternativas para driblar o pacote, ação que também justifica, em parte, os bons resultados das vendas em janeiro e fevereiro. "Buscamos ser criativos com as ferramentas possíveis", diz Fábio Lewkowicz, diretor do grupo Aba, com seis revendas.
Uma delas é o plano em que o consumidor adquire o carro em cinco anos, com entrada de 35%, a ser paga no 30.º mês, ou seja, daqui a mais de dois anos. Um exemplo é o modelo Classic, oferecido em 60 parcelas de R$ 640. A entrada, de R$ 9.880, será paga em agosto de 2013. À vista, o automóvel sai por R$ 28.230.
Os concessionários também aceitam parcelar a entrada no cartão de crédito ou em cheques pré-datados. Os bancos, por sua vez, somam a renda de várias pessoas da família até atingir o valor mínimo necessário para liberar o crédito. "Está todo mundo desesperado para não perder fatias neste grande filão de mercado", avalia o economista Ayrton Fontes, da agência MSantos.
Especializada em varejo de veículos e na organização de feirões, a MSantos tem obtido mais sucesso em eventos nos bairros periféricos de São Paulo do que nas regiões nobres, informa Fontes. Segundo ele, em feirões populares realizados no mês passado, com mídia apenas local, foi vendido o dobro de carros em relação aos feirões tradicionais, feitos em shopping centers.
Para Renato Meirelles, sócio-diretor do instituto Data Popular, especializado na classe C, o sonho do automóvel não é visto como consumo, mas como investimento para uso no trabalho ou para o bem estar da família.
Em entrevista a um grupo de pessoas, Meirelles perguntou a uma participante que havia comprado um carro em 48 parcelas se ela sabia quanto havia pago. Ouviu de resposta: "Sei fazer contas, paguei duas vezes o valor do carro". E ele a questionou se não compensava economizar e pagar à vista. A resposta: "Faz tempo que o senhor não anda de ônibus; não quero esperar, quero o carro agora". É o investimento na qualidade de vida.