A certificação obrigatória dos produtos orgânicos, que entra em vigor hoje (28), vai além de seu objetivo – a regulamentação do mercado, inclusive com os mecanismos de controle a cargo do Estado.
Para os envolvidos no processo, é preciso também derrubar mitos, dos quais o principal é a crença generalizada de que os produtos orgânicos são muito mais caros do que os convencionais.
Apesar da crescente demanda, a agricultura orgânica ainda ocupa pouco espaço nas 5,2 milhões de propriedades rurais do país.
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Dados do Censo Agropecuário 2006, divulgado em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que apenas 1,8% do total de produtores usam tal técnica.
Os ramos mais frequentes são a pecuária e criação de outros animais (41,7%) e a produção de lavouras temporárias (33,5%). A maior parte dos produtos, no entanto, é voltada à exportação (60%), especialmente para o Japão, os Estados Unidos e a União Europeia.
A preocupação com a saúde e o meio ambiente é um dos fatores que explicam o aumento da procura por alimentos orgânicos, em todo o mundo. Na produção orgânica, não podem ser usados agrotóxicos, adubos químicos e sementes transgênicas, e os animais devem ser criados sem uso de hormônios de crescimento e outras drogas, como antibióticos.
Além de produzir alimentos considerados mais saudáveis, na agricultura orgânica, o solo se mantém fértil e sem risco de contaminação. Os agricultores também ficam menos expostos, já que a aplicação de agrotóxicos, sem os devidos cuidados, é nociva à saúde.
Para controlar esse modo de produção, ainda com carência de dados sobre a quantidade de produtores e a área ocupada e de políticas públicas para seu desenvolvimento, o governo criou o Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica (Sisorg) com um selo que, a partir de 2010, deve estar em todos os produtos orgânicos brasileiros. A exceção é para os produtos vendidos diretamente por agricultores familiares.
Produtores, investidores e consumidores ganham com regulamentação
A regulamentação dos produtos orgânicos, à qual toda a cadeia produtiva deve se adequar até o final do ano, deve trazer mais segurança a todos os envolvidos nesse processo. As certificadoras, que atestam se o alimento é orgânico, deverão ser creditadas pelo Instituto Nacional de Metrologia (Inmetro), o que, segundo o presidente da Câmara Temática de Agricultura Orgânica do Ministério da Agricultura, José Pedro Santiago, deve elevar a qualidade no setor.
"Com a regulamentação, no mercado interno haverá possibilidades legais de coibir e punir a venda de produtos que se dizem orgânicos, mas não são. Isso é uma garantia para os consumidores e para a credibilidade do movimento orgânico", afirmou Santiago.
Com normas oficiais para a produção de alimentos orgânicos, disse Santiago, investidores, importadores e também o consumidor brasileiro terão um quadro mais claro do setor, o que deverá promover o crescimento da produção e das vendas. "Nos Estados Unidos e na Europa, a produção e o consumo de orgânicos deram um salto após a aprovação das suas respectivas leis. Isso deverá acontecer também no Brasil."
Além disso, Santiago ressalta a importância do banco de dados com as informações do setor que será criado no Ministério da Agricultura. "Preencheremos uma terrível lacuna. Hoje, não sabemos ao certo o que o Brasil realmente produz de orgânicos. Claro que isso terá impacto no mercado interno e vai ajudar muito nas exportações", observou.
De acordo com o coordenador de Agroecologia do Ministério da Agricultura, Rogério Dias, a partir do próximo ano, haverá novos dados oficiais sobre o setor, a partir do Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos, que devem facilitar a aplicação de políticas públicas específicas.
"Com esse cadastro, vamos saber quem são os produtores, quantos são, onde estão e o que produzem. Vamos saber qual é a área de soja, milho, frutas, carnes, ovos e leite, porque no cadastro teremos também a atividade produtiva de cada um", explicou.
Segundo o Censo Agropecuário 2006, divulgado em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção orgânica no Brasil concentra-se na pecuária e criação de outros animais (41,7%) e na produção de lavouras temporárias (33,5%).
A maior parte da produção (60%) é voltada para a exportação, principalmente para o Japão, os Estados Unidos e a União Europeia. A maioria do que segue para o mercado externo é de produtos in natura, processados da soja, açúcar, café, cacau, carnes, leite e derivados do mel.
Setor espera grande desenvolvimento a partir do ano que vem
A edição de agosto da Revista Orgânica, que circula no Rio de Janeiro, mostrou a dimensão alcançada pela alimentação orgânica na principal potência industrial do planeta, os Estados Unidos.
"A primeira-dama Michelle Obama vai cultivar uma horta orgânica nos jardins da Casa Branca, sede oficial do presidente norte-americano. Da horta, sairão vegetais, ervas e legumes, como espinafre, acelga, couve, tomates pequenos e pimentas, diretamente para a cozinha, para alimentar a família Obama e também para refeições em eventos oficiais", diz a publicação.
"Na realidade, a preocupação deles com alimentação saudável ficou bem clara na campanha eleitoral do presidente norte-americano. Este foi um tema recorrente, bem como a questão ambiental e o desenvolvimento sustentável. Infelizmente, por aqui a história é muito diferente", comenta o coordenador da feira de produtos orgânicos da Glória, no Rio, Renato Martelleto.
A feira coordenada por Martelleto é a mais antiga da capital fluminense e, ao completar 15 anos de existência em outubro, passou a ter uma diversidade maior de alimentos ofertados. As barracas também passaram por uma reforma no seu desenho. Atualmente, 13 produtores são responsáveis pelo abastecimento de produtos, vindos da área rural de cidades da Serra dos Órgãos fluminense.
"Estive agora no Brejal, em Petrópolis, e fiquei triste com a situação dos produtores, sem condições financeiras para a colheita e o transporte até as feirinhas onde vendem. Se a Feira da Glória acabasse hoje, pelo menos 20 famílias do Brejal não teriam como sobreviver", relata. Martelleto se queixa do pouco acesso dos pequenos produtores às medidas de estímulo criadas pelos governos, muitas, vezes, por razões burocráticas.
A questão da certificação obrigatória dos produtos orgânicos a partir do ano que vem, com a vigência da Lei dos Orgânicos, trará uma nova realidade ao mercado, na opinião não só de Martelleto como de outros interessados no assunto. Engenheira agrônoma da Associação de Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (Abio), Lúcia Helena Almeida comemora uma mudança que considera essencial no novo marco regulatório.
"A Abio poderá certificar e orientar os produtores, o que hoje não pode fazer. Uma coisa é certificar o produto como orgânico, vendo que é cultivado morro abaixo e não dizer nada. Outra coisa é ensinar o produtor a plantar em outro lugar, evitando a erosão. Isso é sustentabilidade, é princípio do desenvolvimento sustentável", explica.
A aplicação da lei dará à produção orgânica brasileira uma personalidade institucional que não tem, praticamente reabrindo o mercado que já existe, mas de maneira precária. Como costuma enfatizar o coordenador de Agroecologia do ministério da Agricultura, Rogério Pereira Dias, "o consumidor que ter confiança no produto", e o selo de certificação contribuirá para reforçar esse sentimento, na opinião dos participantes do processo.
Outra consequência da certificação obrigatória será o acesso mais fácil ao mercado externo, onde ela é pré-requisito para qualquer produto. Já estão em andamento, por exemplo, negociações com importadores alemães de orgânicos para adequar a certificação nacional aos moldes europeus.
Coordenador do Grupo Executivo de Agroindústria da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), o economista Antônio Salazar vê o mercado consumidor cada dia mais consciente como uma das origens da legislação mais rigorosa.
"Não só os produtos orgânicos estão em desenvolvimento. Os produtos convencionais também estão e a prova é que a agricultura procura utilizar cada vez menos defensivos, embora eles sejam necessários numa produção em larga escala. E a pesquisa científica, que leva aos transgênicos, busca exatamente produtos imunes às pragas e doenças evitadas pelos defensivos. Na minha opinião, é falsa a dicotomia entre transgênicos e orgânicos".
Para ele, a produção e a comercialização de orgânicos "são o resgate de uma prática antiga da humanidade". Mas o economista ressalta que o setor tem espaço limitado de expansão. "Não acredito que a produção orgânica alcance a escala da necessidade de alimentos no mundo de hoje. É claro que são produtos mais saudáveis e a iniciativa da família Obama é emblemática. Mas nem sei se há espaço no terreno da Casa Branca para uma produção capaz de abastecer a mesa dos eventos oficiais", comenta.
A Firjan desenvolve projetos de fruticultura no norte e noroeste do estado, tradicionais produtores, respectivamente, de cana-de-açúcar e de gado. A proposta da federação é criar um polo produtor de frutas para o mercado interno e para exportação. Salazar comemora a primeira colheita de pêssegos, no norte fluminense, num total estimado de 400 toneladas, neste ano.
Governo paga até 30% mais por produto diferenciado
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) sugeriu, há quatro anos, o pagamento diferenciado para os produtos orgânicos. "Foi uma forma de valorizar e estimular a produção agroecológica", explicou o diretor de Política Agrícola e Informação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Silvio Porto. A diferença pode chegar a até 30% em relação a alimentos produzidos convencionalmente.
"Como é um sistema diferenciado, um produto de maior valor biológico, que exige, por parte dos produtores, um desafio muito maior, às vezes, acarretando mais custos, consideramos justo pagar mais", disse.
Os alimentos orgânicos ainda representam uma parcela pequena dentro do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que atende o Fome Zero e visa a estimular a agricultura familiar. No ano passado, dos R$ 276 milhões aplicados no PAA, apenas R$ 8,8 milhões, pouco mais de 3%, foram destinados a produtores e cooperativas que forneceram alimentos cultivados sem agrotóxicos.
A participação no programa depende da apresentação de uma proposta de fornecimento dos produtos à Conab por uma entidade representativa dos agricultores. De acordo com Sílvio Porto, apesar de ainda representarem uma pequena parcela no programa, os produtos orgânicos têm boa demanda.
"Se a produção fosse maior, compraríamos mais. O que acontece, às vezes, é que há organizações sociais que ainda não têm um nível de articulação muito forte e não dá para reconhecer o produto como orgânico", disse ele.
O Censo Agropecuário 2006, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), diz que mais da metade dos produtores de orgânicos não participa de qualquer organização social (54%). Entre os que têm algum vínculo organizacional, 36,6% são ligados a associações e sindicatos. Os que são ligados a cooperativas representam 5,9%.
De acordo com Porto, com a instituição do marco regulatório para o setor de orgânicos, ao qual toda a cadeia produtiva – dos agricultores aos supermercados – deve se adequar até hoje (28), a tendência é que o percentual desse tipo de alimento dentro do PAA aumente mais rapidamente com a simplificação da forma de certificar os produtores.
Região Norte é a que menos consome esse tipo de alimento no país
A produção e o consumo de alimentos orgânicos no Norte do país ainda está "engatinhando" em comparação com as demais regiões. De acordo com a Comissão da Produção Orgânica do Pará (CPOrg-PA), a Região Norte é responsável por apenas 2,6% da venda de orgânicos no Brasil e é a que menos consome esse tipo de produto.
Levantamento da prefeitura de Belém indica que a agricultura orgânica concentra-se nas regiões Sudeste (60% da produção e comercialização) e Sul (25%). Na Amazônia, a produção ainda é incipiente, afirma a coordenadora da comissão, Martha Parry.
Martha atribui a pequena produção a fatores como o alto custo para a certificação dos orgânicos e a falta de capacitação técnica na região, o que inviabiliza a participação de maior número de pessoas na atividade. A certificação de alimentos orgânicos no país é feita atualmente por 20 empresas autorizadas pelo Ministério da Agricultura.
"O problema é que essas empresas estão todas no Sudeste e no Sul do país, e trazê-las para o Norte implica altos custos que, se efetivados, vão encarecer o produto."
Apesar de considerado pelo ministério um mercado em plena expansão (o país tem 800 mil hectares de terras destinadas à agropecuária orgânica), Martha ressalta que muitos itens são produzidos na Região Amazônica de forma extrativista sustentável, ou seja, sem o uso de agrotóxicos. Contudo, para serem considerados orgânicos, precisam usar apenas fontes de nutrientes naturais em todo o processo de plantio e desenvolvimento.
"São alimentos orgânicos de fato, mas não de direito. Não é só pela ausência de agrotóxico que um alimento é considerado orgânico. Tem outros elementos envolvidos, como a saúde e o respeito ao meio ambiente", esclarece.
Ainda assim, o Pará e o Amazonas – maiores estados da Região Norte – exportam guaraná, castanha e cacau – todos orgânicos. Em Manaus e em Belém, as comissões da Produção Orgânica promovem feiras para ajudar pequenos produtores a vender o que cultivam. "Somente quando o produtor faz a venda direta ao consumidor é que o comércio pode ocorrer sem a certificação. É o caso das feiras de orgânicos de Manaus e de Belém, feitas com relativa periodicidade", diz Martha.
O pesquisador de genética e melhoramento do guaraná André Atroch, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Unidade Embrapa Ocidental, destaca que a produção de alimentos orgânicos na região ainda é feita de forma fragmentada e em pequena escala. Atroch defende a rediscussão dos mecanismos de certificação para reduzir os custos e a burocracia no setor.
"A grande dificuldade na produção de alimentos orgânicos é que não existe um sistema de produção organizado em larga escala. Precisamos organizar isso desde o homem do campo até a indústria", afirma o pesquisador.
Produção pequena é causa dos altos preços, diz gerente de supermercado
Atualmente, na Europa e nos Estados Unidos, já se encontram à venda alimentos orgânicos com preços bem próximos dos convencionais, mas, no Brasil, a diferença entre eles, muitas vezes, pode passar do dobro.
Para a gerente comercial de Alimentos Orgânicos do grupo Pão de Açúcar, Sandra Caíres, o motivo de tanta discrepância está na pequena produção de orgânicos no país.
"Na Europa e nos Estados Unidos, a diferença de custo do orgânico para o convencional fica entre 25% e 40%, no máximo. No Brasil, que ainda está embrionário no setor, as diferenças são absurdas, indo a mais de 100%, porque o país ainda não tem produção em escala", afirmou Sandra.
Segundo ela, existe dificuldade para conseguir alguns tipos de alimentos orgânicos, principalmente frutas, e colocar à venda na rede de supermercados em que trabalha. Como as culturas frutíferas levam mais tempo para ser produzidas, e não há muito incentivo governamental, poucos agricultores conseguem enfrentar todo o processo até conseguir comercializar a produção, ressaltou.
Apesar de os preços ainda serem altos, o consumo de alimentos orgânicos é uma tendência, afirmou Sandra. E, quanto mais a população for se informando e a escala aumentando, os preços irão cair. "Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, onde o consumidor sabe o que é um alimento orgânico e cobra, no Brasil, como esse conhecimento não vem da escola, é o varejo que faz essa oferta. Mas, quando isso acontece, a venda é constante e não tem volta", afirmou.
Ela informou que, de janeiro a abril deste ano, enquanto a venda de produtos convencionais cresceu 10%, na comparação com o mesmo período do ano passado, a de alimentos orgânicos aumentou 40%. Para Sandra, o que tem levado as pessoas a comprar mais orgânicos é a preocupação com a saúde e a segurança alimentar. "O alimento orgânico é rastreado. Você sabe o lote que está comprando, quem é o fornecedor, e tem uma certificação que garante isso."
Para o coordenador de Agroecologia do Ministério da Agricultura, Rogério Dias, muitos supermercados consideram os alimentos orgânicos um nicho de mercado, o que acaba contribuindo para a manter os preços altos. De acordo com o agrônomo, é preciso haver uma rede que integre todos os setores da cadeia produtiva para que exista um mercado justo, como acontece em cidades pequenas, onde o alimento orgânico muitas vezes é vendido nas feiras pelo mesmo preço, ou até mais barato que os demais.
Dias destacou também que é importante o consumidor de orgânicos ter consciência de sua responsabilidade, dando preferência a alimentos da estação e procurando feiras e supermercados que invistam no desenvolvimento desse mercado. "Existe um entendimento entre os homens públicos de que agricultura orgânica não é nicho de mercado. É um novo modelo de desenvolvimento", afirmou.