É em meio a baobás e debaixo de um Sol incisivo, que eleva a temperatura a 40°C com facilidade, que se movimenta o maior investimento do Brasil na África hoje: a operação de carvão da Vale, em Moatize, Moçambique. Este é o terceiro ano de produção da Vale no país e há críticas tanto sobre as condições de vida das mais de mil famílias reassentadas quanto com relação às isenções de imposto obtidas pela mineradora. Além disso, um novo conflito armado iniciado no país pode prejudicar as operações.
As reservas de carvão de Moatize são consideradas as maiores ainda não exploradas do mundo. Em 2004, parte delas foi concedida à Vale, depois de 24 anos de negociações entre os governos do Brasil e de Moçambique. Em 2012, a mineradora se tornou a maior investidora no país – ultrapassando Portugal, a África do Sul e China. Os investimentos na primeira fase somaram US$ 1,8 bilhão. A segunda já foi iniciada e deve consumir US$ 6,4 bilhões. O valor total representa mais da metade do PIB anual de Moçambique.
Além de uma nova mina, a cargo da Odebrecht, a Vale está construindo uma ferrovia de 912 quilômetros – equivalente à extensão da Estrada de Ferro Carajás, no Pará. Ela ligará Moatize à cidade portuária de Nacala, onde a Vale também está erguendo um porto de águas profundas. A construtora brasileira OAS participa do consórcio que realiza a obra.
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A previsão é que a Vale produza 6,2 milhões de toneladas de carvão este ano. Quando a operação estiver na sua capacidade máxima, prevista para 2017, a produção deve chegar a 22 milhões de toneladas. O carvão é extraído a céu aberto, com alta tecnologia e rígidos parâmetros de segurança. "A Vale é uma empresa brasileira, que chega com sotaque brasileiro, mas com vontade de ser uma empresa moçambicana", diz Ricardo Saad, diretor de projetos da Vale para a África, Ásia e Austrália.
Reassentamentos. Na área da Vale, havia três povoados com o total de 1.313 famílias. Elas foram removidas para dois reassentamentos construídos pela mineradora. Um deles fica na cidade de Moatize, vizinha da mina da Vale, para onde foram as populações com características urbanas. O outro foi destinado àqueles que viviam da agricultura de subsistência e erguido em um local que dá sentido literal para a expressão "no meio do nada".
Chamada de Cateme, a vila fica a 37 km da "zona de origem", como os reassentados se referem à região de onde vieram. Não há nenhuma cidade próxima e a estrada asfaltada dista 8 km. Por isso, as comunidades perderam o acesso aos mercados onde vendiam os produtos que colhiam ou que coletavam da natureza. Além disso, a geografia do local é diferente, a começar pela ausência dos baobás, tão frequentes na área da Vale. O solo é mais seco e pedregoso. Segundo os reassentados, é menos propício para a agricultura.
A Vale diz que a escolha da localização de Cateme foi do governo moçambicano. O mapa de licenças de pesquisa e exploração mineral da região mostra que o reassentamento fica em um filete de terra vago, em meio a um quadriculado de áreas já concedidas.
São duas as críticas principais aos reassentamentos: a baixa qualidade das casas construídas e a falta de meios de subsistência e trabalho. As casas estão sendo reabilitadas pela segunda vez. O maior problema é que os alicerces – as bases que sustentam a construção – foram feitos com pouca espessura e não resistiram à erosão. Em alguns casos, suas extremidades se soltaram do chão de terra e davam a impressão de que as casas estavam flutuando. Há quem seja contrário ao reparo e defenda que a Vale reconstrua do zero. Para eles, sem um bom alicerce, a casa cai.
Trabalho. "Na zona de origem, vivíamos à beira do Rio Rovungué, onde as pessoas se dedicavam a suas culturas. Não havia aqueles problemas de lamentações. Cada um tinha seus recursos, como conseguir se sustentar. Aceitamos vir para aqui, mas as terras não são favoráveis", explica Raul Coelho, líder de uma das comunidades reassentadas em Cateme.
Segundo ele, a infraestrutura do reassentamento melhorou depois de um protesto que paralisou a linha férrea por onde a Vale escoa carvão, no início de 2012. Este ano, dois novos protestos paralisaram as minas da Vale. Dessa vez, produtores de tijolos que atuavam na área contestavam as indenizações pagas pela Vale.
"Lá havia machambas, tijolos, lenhas, vassouras. Tinha água, criação. A pessoa estava livre. Mas, agora, quando entrou essa empresa Vale para acabar com a pobreza, há mais problemas", lamenta Saize Roia, que era líder de outra das comunidades reassentadas. "Não tem nenhum trabalho. Mas a mina está a tirar carvão. Por que não leva esses reassentados para lá? Significa que ele não podem extrair carvão? Por quê?", completa Roia.
A Vale afirma que 86% dos trabalhadores são moçambicanos. Agora, a mineradora está treinando jovens de Cateme para trabalhar na mina e desenvolvendo programas piloto de geração de renda, como criação de frangos, produção de hortícolas e de gergelim e feijão. "Um dos grandes desafios de qualquer megaprojeto é administração de expectativa. Todo mundo teve a expectativa de que sua vida e o país iam mudar da noite para o dia. E não é assim que as coisas acontecem. Todos esses benefícios que a gente fala, eles são benefícios que eles certamente ocorrerão ao longo do tempo", afirma Saad, da Vale.
Impostos. O contrato com a Vale prevê a isenção de alguns impostos nos primeiros anos de operação, quando os custos de investimento forem maiores que os ganhos com a venda do carvão. Além disso, estabelece que a Vale pague royalties de 3% sobre o minério que for comercializado, não sobre o extraído da terra. É uma grande diferença. Em 2013, a Vale estima que vai exportar cerca de metade da produção.
"O contrato com a Vale é um contrato problemático, que arrepia a lei. Na questão dos royalties, a lei estabelece que eles são pagos sobre a produção", diz Adriano Nuvunga, diretor do Centro de Integridade Pública, uma organização de investigação moçambicana. Em agosto de 2013, foi lançada em Moçambique uma campanha que pede a revisão da tributação dos mega-projetos minerais. Fala-se inclusive da renegociação dos contratos já estabelecidos. O da Vale, entre eles.
"Para instalar uma mineradora como a Vale, há muitos custos. Se a atividade começar sem incentivos fiscais, significa ter quatro a cinco anos seguidos de endividamentos muito grande. Então, a melhor forma de encorajar é definir incentivos fiscais nos primeiros anos", defende Ratxide Gogo, governador da província de Tete, onde fica Moatize.
O vice-ministro de recursos minerais, Abdul Razak, afirma que há outros benefícios além do pagamento de impostos. "Para as receitas do país, contamos com todas as ligações empresariais que se criam em Moçambique". Ele cita a renovação da infraestrutura, instalação de outras empresas para atender à mineradora e contratação de mão de obra local.
Conflitos. As operações da Vale também podem ser prejudicadas por um novo conflito entre o governo moçambicano e a Renamo, grupo que esteve em um dos lados da guerra civil que ocorreu de 1976 a 1992 e deixou mais de 1 milhão de mortos. Este ano, depois de 20 anos de paz, houve novos embates no centro do país, por onde passa a ferrovia usada pela Vale para escoar carvão.
Em junho, a Renamo decretou o bloqueio da ferrovia e a Vale reduziu o número de carregamentos de carvão – hoje já normalizado. Já a Rio Tinto, mineradora australiana concorrente da Vale, suspendeu o escoamento da produção pela mesma linha férrea e anunciou o interesse de vender sua mina. Em outubro, o exército moçambicano atacou a base principal da Renamo e gerou temores de retorno à guerra civil. "Estamos acompanhando os acontecimentos atentamente", declarou Saad para a Reuters.