Os milhares de moradores das Vilas Audi/União, um dos maiores bolsões de pobreza de Curitiba, que ocupam aproximadamente três mil moradias em precárias condições, vivem assustados por uma tragédia e passaram a ter a rotina alterada pela maciça presença policial nas ruas do bairro e pelo medo de um suposto toque de recolher, que quase todo mundo ouviu falar mas ninguém presenciou de verdade.
Nas ruas da Vila Icaraí, cenário da chacina que matou oito pessoas e feriu duas no último sábado (03), vê-se um comércio aberto, mas praticamente vazio. O movimento fica por conta das máquinas que pavimentam ruas e constroem as casas do PAC da Habitação e por algumas poucas crianças que soltam pipas, jogam bola e andam de bicicleta. Quem está nas ruas sempre olha com desconfiança para os carros diferentes que vê circulando. Fora isso, muitas viaturas da Rone, do Cope e do patrulhamento a cavalo feito pela Polícia Militar do Paraná.
Para se chegar na Vila Icaraí, onde se estima a presença de mil casas e barracos, basta sair da BR-227 – que liga Curitiba ao Litoral – à direita, logo depois de passar a Estação de Tratamento da Sanepar, e seguir dois quilômetros pela principal rua do loteamento Iguaçu, asfaltada e repleta de comércio. Entrando à esquerda, logo se passa o trilho do trem e o cenário muda. Pouca iluminação pública, o mato que toma conta das ruelas e os barracos.
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Sem toque de recolher - Lá, é difícil encontrar alguém que tenha ouvido pessoalmente o anúncio do toque de recolher, supostamente imposto por traficantes aos moradores da invasão. Encontram-se os que ouviram falar e os que desmentem veementemente o aviso. Além disso, nenhum morador conhece alguém que tenha presenciado o aviso.
Num dos principais supermercados da região, a poucos metros de onde aconteceram algumas mortes, os donos garantem que nunca receberam nenhum aviso de toque de recolher. "No sábado trabalhamos normalmente até às 21 horas e, depois disso, meu marido ficou na rua resolvendo problemas com o carro. Quando tudo aconteceu, ajudamos a socorrer duas das vítimas. Mas em nenhum momento, até hoje, aconteceu qualquer tipo de anúncio de toque de recolher. Lemos que estes avisos têm sido passados nos supermercados, mas no nosso ninguém passou", disse Marli Soster, dona do supermercado Progresso.
Marli e o marido Jair contam que acabaram de inaugurar a nova sede do supermercado, que antes ficava no pátio que agora serve como estacionamento. "Você acha que se esta vila fosse um inferno, investiríamos nosso dinheiro para manter o mercado e a nossa família aqui?", questiona Jair. Para ilustrar, disse que mora na Vila há nove anos e o único assalto que sofreu aconteceu há cinco anos. "A violência que vemos aqui é a guerra entre traficantes. Esta foi a primeira vez que pessoas inocentes morreram", disse.
Segundo o casal, o movimento na região diminuiu depois da tragédia, mas aos poucos está voltando ao normal. "As pessoas estão dentro de casa porque têm medo de um fogo cruzado entre a polícia e os bandidos", explica.
O "homem do carro de som" - um dos principais personagens que seria responsável por ajudar a espalhar o toque de recolher, contou que nunca recebeu nenhum pedido para fazer este tipo de anúncio. "Não recebi e não faria nem por um milhão de reais", disse o homem, que não quis ser identificado. Ele contou que antes da tragédia sempre trabalhava até tarde da noite. "Depois, mesmo com a presença da polícia, achei melhor terminar o serviço mais cedo e ir para casa. Mas toque de recolher nunca fiz e nunca presenciei um anúncio desses", disse.
Dona Raquel Carvalho da Silva Assunção, 41 anos, perdeu na chacina o mais velho dos 11 filhos e também o genro, pai de sua neta de apenas dois meses. Assustada, apenas nesta quarta-feira (07) teve coragem de voltar para casa com a família. "Moro aqui há 10 anos e foi a primeira vez que vi tragédia assim. Se tivéssemos ouvido falar sobre o toque de recolher não deixaria meu filho e meu genro saírem de casa. Mas não ouvimos nada, não sabíamos de nada. Só agora que estão falando sobre isso", contou dona Raquel.