Na esquina da Rua Maranhão com Minas Gerais, um saxofonista toca "Autumn Leaves" (Folhas de Outono). Não exagero ao dizer que essa música ajudou a salvar minha vida. Nos momentos de maior angústia e incredulidade, quando Deus parecia distante e improvável, a melodia do compositor húngaro Joseph Kosma me dava força e esperança (embora eu tenha passado muitos anos de minha vida a evitar esta última palavra).
Paro, olho, escuto. É o mesmo tema que ouvi tantas vezes em horas de angústia, medo e melancolia. Tempos que felizmente já passaram. Mas as "Folhas de Outono" têm ainda o poder de me acalmar o coração. Jesus, algumas vezes chamado de "Filho de Davi", chegou a acalmar até a própria tempestade e as ondas do mar. A música é um milagre.
Converso com o saxofonista. Londrinense, mora em São Paulo. Comigo, foi o contrário: paulistano, moro em Londrina. O músico se chama Pedro Augusto. Mais um motivo para gostar do rapaz: é Pedro, xará do meu filho. Conta-me que está na cidade para apresentar um concerto de música antiga, com canções em hebraico, aramaico, árabe e latim. Além de saxofonista, Pedro Augusto toca alaúde. Um instrumento bíblico, citado nos Salmos de Davi.
Estamos no outono londrinense que mais parece o alto verão. Fico sabendo que Pedro pertence aos Filhos de Noé (B’nei Noah) e segue as Sete Leis do Patriarca: Avodah zarah (Não cometer idolatria), Shefichat damim (Não assassinar), Gezel (Não roubar), Gilui arayot (Não cometer imoralidades sexuais), Birkat Hashem (Não blasfemar), Ever min hachai (Não maltratar aos animais) e Dinim (Estabelecer leis de honestidade e justiça). Que feliz seria o Brasil se tais leis fossem respeitadas!
Então eu penso numa adorável velhinha chamada Alice Herz-Sommer (1903-2014). Recentemente, por indicação de minha querida amiga Janaína Ávila, assisti a um documentário sobre essa pianista, a mais longeva sobrevivente do Holocausto nazista. Judia nascida em Praga, Alice foi enviada com o filho para o estranho campo de Theresienstadt, que Hitler criou para finalidades de propaganda, tentando passar ao mundo a impressão de que os judeus eram "bem tratados". Até pouco tempo atrás, era possível ouvir o piano maravilhosamente bem tocado de Alice em um apartamento na região norte de Londres. Ela não parou de tocar até morrer, com 110 anos de idade e uma inabalável alegria no coração. Seus compositores prediletos eram Beethoven, Bach, Chopin e Schumann. "A música é um sonho", diz essa mulher que nos faz sentir orgulho de pertencer à espécie humana.
A música salvou Alice, provavelmente salvou Pedro e salvou a minha vida também. "A beleza salvará o mundo", disse Dostoiévski. Tinha toda a razão.
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