De vez em quando eu tenho sonhos melhor seria dizer pesadelos sobre como seria minha vida se eu não tivesse encontrado você. Ontem aconteceu: sonhei que estava dentro de um ônibus vestido com um saco de lixo no lugar das calças. Tinha deixado crescer tanto os meus cabelos que agora parecia um urso, ou melhor, alguém que estivesse usando uma peruca de urso. Passei diante de uma igreja destruída pelo fogo e não fiz o sinal da cruz. Este seria eu se não a tivesse encontrado.
É provável que eu ainda fosse algum tipo de marxista ou revolucionário, como aquele personagem do livro que acabei de ler, "O Coração é um Caçador Solitário". Jake Blount passa os dias bebendo e brigando e escrevendo panfletos que ninguém lê. Eu seria esse homem e, se um dia encontrasse um jumento sendo maltratado na rua, eu o abraçaria chorando e dizendo que ele é o salvador do mundo.
Eu teria esquecido que um dia li "Guerra e Paz" no quarto da República e não me lembraria mais da morte do príncipe André. Não conheceria os diários de Madre Leônia, nem estaria preocupado com a doutrinação ideológica das crianças nas escolas. Não choraria nunca mais, porque já teria gastado as lágrimas todas.
Outro dia um mendigo me parou na rua. Tinha os olhos vermelhos e secos, uma tatuagem no braço meio apagada pela sujeira e o proverbial hálito de cachaça. Conversei com ele por alguns instantes, enquanto mexia nos bolsos procurando moedas com que ele pudesse comprar alguma bebida forte. "Por que você dá esmolas?", perguntará uma assistente social esquerdista, com indignação. Porque aquele homem sou eu, se não tivesse conhecido você.
Eu não teria uma coluna onde posso conversar com meus sete leitores todas as manhãs. Aliás, eu não teria manhãs apenas algumas horas de sono agitado. Viveria numa eterna manhã inexistente.
De fato, parece que a minha vida sem você continua existindo em outro plano de realidade, um universo paralelo, como se fosse uma advertência de Deus sobre a possibilidade do mal, sobre a concretude da perdição, sobre a existência do inimigo. Minha vida longe de você é uma coleção de fragmentos espalhados ao longo de um caminho, como se estivessem a dizer: "Nós poderíamos ter sido". Poderiam ter sido um vitral, um lar, um homem.
Ai de mim sem você. É por isso que eu rezo todas as manhãs. É por isso que eu converso com Deus enquanto o Sol ilumina a nossa casa, que não é grande, mas nos acolhe. É por isso que eu olho para você e para o Pedro, quando ambos estão dormindo, e digo: "Proteção, saúde, alegria". Inclino a cabeça, cerro os olhos e peço outra vez: "Proteção, saúde, alegria". E, para não deixar dúvidas, suplico uma terceira vez ao Pai, ao Filho, ao Espírito: "Proteção, saúde, alegria".
Sem você eu não seria. Sem você eu não. Sem você, eu. Só eu. Ai de mim!