Uma questão sempre colocada por quem enxerga o relacionamento abusivo do lado de fora é: por que não terminar a relação? Responder isso sem levar em consideração alguns pontos é uma atitude equivocada.
Juliana Cestaro, estudante de psicologia, alerta que, no caso da mulher, o machismo implica submissão e aceitação de situações abusivas. "A cultura da fragilidade feminina, ou de que a mulher precisa de cuidado e de um homem que a sustente, é um campo aberto para que ele faça coisas sem ser julgado. Não é punitivo, afinal, se ele não deixou ela sair de casa, geralmente está cuidando dela. É muito mascarado."
Além do machismo, num casamento há, por exemplo, a questão financeira que dificulta a saída ou o término da relação. Para o psicólogo Felipe Martin Oliveira, "no caso dos casais, há a dependência financeira, é algo como ‘ele me bate mas paga as contas e coloca comida na mesa, então, se eu me separar, não terei apoio de ninguém'. Isso acontece muito no caso do homem agressor e da mulher agredida."
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Ele ressalta que a diferença salarial entre homens e mulheres também reforça essas situações. "No caso da mulher, ainda tem a questão salarial, afinal, vivemos numa sociedade machista e patriarcal. Daí o homem ganha mais do que a mulher e, de certa forma, há sérias implicações nesse sentido."
Outra questão pouco abordada é a falta de campanhas de conscientização. Nesse sentido, Felipe afirma que "governos em geral não têm a mínima preocupação com isso, basta ver os ministérios, Câmara de Deputados majoritariamente formada por homens, eles usufruem desse sistema e não estão preocupados em mudá-lo".
Juliana defende que, além de campanhas de conscientização, outras ações podem ser feitas visando diminuir a incidência desse tipo de relação. "O caminho mais efetivo e mais rápido é a conscientização. Cursos que esclarecem a respeito do tema. É escrevendo matéria em jornal ou ajudando uma amiga que está numa situação de ‘perrengue’ e não só olhar pra ela e dizer que é normal."
Felipe defende também que a questão política deve ser analisada. "Uma coisa é perceber quem estamos colocando no poder e, além disso, lutar por leis de equiparação salarial entre os gêneros. É necessário também esclarecer a população de que mulher não é sexo frágil ou homem é o provedor’ é algo construído pela sociedade patriarcal", e nesse sentido as escolas podem desempenhar esse papel.
Relato
"Percebi que o momento de terminar foi quando presenciei um espancamento que ele fez com a própria mãe." O relato acima é de Laura, 34 anos, jornalista.
Os dois se conheceram na adolescência, tiveram alguns desencontros, mas, por fim, ficaram juntos. A relação seguia bem, afinal, afirma Laura, "ele era bem doce e carinhoso ainda que apresentasse sinais de bipolaridade".
Além disso, o ex-namorado não demonstrava sinais de ciúme. "Ele tinha um ciúme tranquilo, suportável, não reclamava de roupas curtas, mas era possessivo e me queria o tempo todo perto dele. No final das contas, em um mês de relacionamento, fui morar com ele e com a mãe."
Ela ressalta que, "no começo tudo era um sonho". "Me sentia extremamente amada, mas, com o passar do tempo, sentia muita culpa. Tudo o que acontecia, achava que a culpa era minha. Devido a essa culpa, me desdobrava para satisfazê-lo e estava presa e tinha uma dependência absurda dele."
A relação, que durou pouco mais de um ano, teve um estopim que Laura considera um divisor de águas. "Vi que era hora de terminar, quando presenciei um espancamento que ele fez com a própria mãe. Depois disso, ele olhou para mim e perguntou se era o que queria para a minha vida. Comecei a sentir medo, medo de sair com ele, de ficar sozinha com ele e me dei conta de que estava sozinha, afinal, ele havia afastado todos os meus amigos de perto de mim."
Ela ressalta: "mesmo sentindo medo, não terminava porque amava ele e achava que fosse salvá-lo daquilo. Quando ele falava que ia me deixar, chorava muito e implorava ‘eu te amo, me deixa te ajudar’".
Além de ter presenciado a violência, o ex-namorado fez uma verdadeira "tortura psicológica", segundo ela. "Ele me torturou emocionalmente por cinco dias, não me deixou dormir porque achava que tinha traído ele. Ele entrou no meu quarto e fiquei sem dormir enquanto ele me pressionava. Ao final do surto, ele me pediu desculpas, falou que era a mulher da vida dele, essa coisa que todo abusador faz."
A percepção de Laura só começou a mudar quando uma amiga chamou a atenção ao fato de que ela estava sendo maltratada. "Na época, não via que isso era abusivo. Sou mulher, graduada, de classe média alta. Via relacionamento abusivo de homens que agrediram mulheres, agressões verbais ou físicas e no meu relacionamento não tinha isso."
A "única" situação que ela considera agressão física aconteceu quando ele tirou o celular da mão dela. "Uma vez ele tirou o celular da minha mão à força e, no dia do espancamento da mãe dele, entrei na frente e ele me jogou no chão, mas foram as ‘únicas’ vezes que aconteceu de ele encostar em mim."
Tendo chegado ao limite, Laura pôs fim à relação na qual estava. Teve grandes dificuldades, pois ainda que tivesse o apoio dos pais, não foi tão simples. "Quando terminei, me vi sozinha, sem amigos, sem ter com quem conversar, daí entrei em depressão, fiquei três dias chorando sem acreditar que tinha acabado. As pessoas acham que é brincadeira ‘terminou, segue em frente e arruma outro’, mas não é assim. Recomeçar é a parte mais difícil porque você está sozinha."
Apesar de tudo, ela tem seguido em frente e afirma: "é difícil, mas você segue, vai vivendo um dia após o outro. Tenho feito terapia, tomado medicação, até voltei a morar com meus pais. Eu tive recaídas, não de voltar, mas de sentir saudade, sentir falta, mas você tem de tentar e, acredite, no final você consegue!"