A alma feminina esconde preciosidades. Para protegê-las, criou um mecanismo tão complexo e enigmático que poucos do sexo oposto conseguem decifrar. Os homens mais realistas, cientes de sua mente simplória, já não se dão ao trabalho de tentar compreender suas mulheres. Para fazê-las felizes - e serem felizes com elas -, sabem que precisam, mais do que tudo, amá-las. Tentar entender suas peculiaridades seria trabalhoso e, no fim das contas, inútil.
Em 1989, quando começou a apresentar seu programa de rádio na cidade de Nanquin, na China, a jornalista Xinran deu início a um processo igualmente difícil. Segundo ela, o Palavras na Brisa Noturna pretendia abrir um janela, ainda que minúscula, para que as ouvintes "pudessem desabafar e respirar, depois da atmosfera carregada de pólvora dos quarenta anos precedentes". A idéia do programa, impraticável até poucos anos antes, aproveitava o incipiente momento de abertura do país.
Telefonando para o programa e contando a Xinran as dificuldades e angústias de suas vidas, as mulheres chinesas poderiam finalmente dedicar atenção a si próprias e tentar, assim, se conhecer, se entender. Embora também oferecesse conselhos, a jornalista atuava muito mais como mediadora dos debates que tinham lugar nos intervalos entre as músicas. Afinal, mesmo sendo esclarecida e ocupando um cargo pouquíssimo acessível para uma mulher em seu país, Xinran não era muito diferente das demais: era mais uma chinesa ingênua e cheia de dúvidas.
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Até iniciar seu trabalho, conhecia tanto de outras chinesas quanto das mulheres de outras culturas: jamais havia visitado outro país, e os costumes "libertários" das ocidentais nunca teriam espaço na mídia da China, rigorosamente controlada pelo governo do Partido Comunista. Conseqüentemente, ela precisava ser extremamente cautelosa com cada tema debatido no programa, pois sabia que os ouvidos de seus superiores estavam bem atentos a qualquer discussão que fosse de encontro aos interesses do Partido.
Em uma das maiores saias-justas de sua carreira como apresentadora, Xinran teve que responder às perguntas de uma verdadeira criminosa (ao menos de acordo com o código penal do país): uma homossexual. "Por que tanta gente discrimina os homossexuais? Por que foi que a China tornou a homossexualidade ilegal?". Com habilidade, Xinran conseguiu tratar do assunto de maneira que o programa não fosse imediatamente suspenso pelo Partido. Muito mais difícil foi escapar das investidas da ouvinte - que estava apaixonada pela apresentadora.
Mas muita coisa jamais foi transmitida. Grande parte das cartas recebidas pelo programa não puderam ser comentadas no ar. Xinran se emocionava com elas, sofria com elas. E se entristecia ainda mais por não poder compartilhá-las com outras ouvintes, que tinham problemas iguais ou piores. Nesses momentos, a única saída era correr ao banheiro e chorar sozinha atrás da porta. A desilusão por ter acesso a certas informações e não poder transmiti-las - drama comum a qualquer jornalista, mas um pouco mais grave em países de governos autoritários - a fez abandonar a profissão e, mais tarde, a própria China.
Infelizmente para as chinesas, histórias como a da "mulher cujo casamento foi arranjado pela Revolução" só foram conhecidas em outros países, depois que o livro, que virou best-seller, foi publicado na Inglaterra - para onde a hoje colunista do The Guardian se mudou e passou a lecionar na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres.
Quase todas as histórias de As boas mulheres da China são desconcertantes, absurdas, algumas inacreditáveis. Logo no segundo capítulo, "A menina que tinha uma mosca como animal de estimação", o leitor tem uma idéia do que lhe espera mais adiante. A adolescente, estuprada pelo pai com o consentimento da mãe, se machucava freqüentemente para poder passar longas temporadas no hospital - único lugar onde ficava livre dos abusos.
Na conversa com uma universitária, uma inocente Xinran percebe o quão pouco conhece a nova geração e o vê o tamanho de seu desencanto. A estudante moderninha lhe assombra ao contar que espera pouco do amor e dos homens, até porque "muitos chineses pensam que dizer umas palavras carinhosas à esposa está abaixo de sua dignidade".
Não por acaso: perto da metade do livro, o leitor conhece quais são, no pensamento masculino chinês, as três submissões e quatro virtudes das mulheres: "submissão ao pai, em seguida ao marido e, depois da morte deste, ao filho. As virtudes eram fidelidade, encanto físico, decoro na fala e nos atos, e diligência no trabalho doméstico". Não impressiona, portanto, que em um dos lugares mais remotos do país os homens não pensem duas vezes antes de trocar duas ou três filhas pequenas por uma esposa de outra aldeia.
A atmosfera que permeia o livro é de uma tristeza que assombra. Mas a extrema sensibilidade, simplicidade e beleza com que Xinran escreve serve como antídoto para as perturbadoras histórias nele relatadas.
Ainda na China, Xinran foi considerada a primeira apresentadora a "erguer o véu das chinesas", "a primeira jornalista de questões femininas a retratar a verdadeira realidade da vida das mulheres". Poucos de seus colegas percebiam mas, ao fazer isso, ela desvendava também sua própria condição, seus próprios enigmas. Com um punhado de exemplos, muitos tirados de sua própria vida, Xinran conseguiu revelar ao mundo um pouco da resistente dignidade e da alma das boas mulheres chinesas - rol em que seu nome está inevitavelmente inscrito.
Em tempo: Chegou este mês às livrarias o segundo livro de Xinran, Enterro Celestial, que conta a história real de Shu Wen, que procurou seu marido desaparecido no Tibete por mais de três décadas. O relato também surgiu a partir de entrevistas para o programa de rádio Palavras na Brisa noturna.
Serviço
As boas mulheres da China
Xinran
Companhia das Letras
2003
288 páginas
R$ 39,00