É evidente e surpreendemente boa a distância que separa atualmente o cantor e compositor Arnaldo Antunes do rock. Talvez seja por isso a gravadora Biscoito Fino topou a parceria com o selo Rosa Celeste do ex-Titãs e lança ''Qualquer''. Intimista, contemplativo, sereno, os adjetivos virão espontaneamente ao trabalho que, mesmo embasado na chamada música brasileira convencional, soa pop sem necessariamente fazer ruído ou trazer embutidos maneirismos do gênero.''Qualquer'' é um disco merecedor de palavras boas.
Mas o que chama a atenção é o timbre grave, quase gutural, que Arnaldo Antunes explora em sua garganta. Ele está em busca de uma identidade como intérprete. Está no caminho certo. Em volume baixo, a voz de Antunes funciona como um contraponto percussivo a um disco isento de bateria - a dinâmica rítmica vem principalmente das batidas nas cordas de violão e piano. Todo empenho vocal tem um objetivo: aproximar-se da fala.
Inicialmente, Arnaldo Antunes pensou em fazer um projeto de CD e DVD ao vivo. Mudança de rumos - patrocínio, entre eles -, começou a pensar num álbum em que a tônica seriam as releituras de canções próprias e alheias num tom mais suave. Dois meses de ensaios e três dias de gravação ao vivo - quer dizer, com todos os músicos nos estúdios - e ''Qualquer'' ganha forma e vem com gosto de delicadeza, suavidade, maturidade. Algo, no entanto, ainda pulsa nas letras.
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Catorze músicas, poucos músicos. São eles: Chico Salem (violões e vocais), Dadi (baixo, violões, guitarras e vocais), Daniel Jobim (piano e vocais), Edgar Scandurra (guitarra, banjo, baixo e vocais) e a participação especial de Cézar Mendes (violões de nylon e aço em ''Eu Não Sou da Sua Rua''). O repertório é de releituras (agora em tom suave), gravações de canções dada a outros artistas (''Lua Vermelha'', a Marisa Bethânia, em 96 e ''Sem Você'', ambas parceria com Carlinhos Brown e registradas pelo próprio em 98) e inéditas.
Destaques ficam pelo bem-estar proporcionado em ''Contato Imediato'' (parceria pós-Tribalistas dele com Marisa Monte e Brown), ''Hotel Fraternité'' (poema de Hans Magnus Enzensberger musicado por ele) e ''2 Perdidos'' (parceria com Dadi Carvalho). Há momentos evocativos como ''Acabou Chorare'' (do clássico disco de 72, dos Novos Baianos). As inéditas ficam por conta de ''Qualquer'' e ''Num Dia'' (feitas com os portugueses Helder Gonçalves e Manuela Azevedo).
''Qualquer'' insinua-se antológico. Ou, ao menos, um disco que estava fazendo falta tanto ao ex-Titã quanto à música brasileira - de qualidade, obviamente. A seguir os principais trechos da entrevista que Arnaldo Antunes concedeu à Folha2.
Interassante ouvir você num tom sonoro e vocal mais intimista. Que tipo de prazer acredita proporcionar nessas camadas, digamos, mais profundas?
Meus outros discos tinham algumas coisas gravadas nesse tom de voz. Esse registro de canto convivia com faixas mais cantadas para fora, às vezes mais berradas. Quando eu gravei ''Exagerado'', do Cazuza, dizia que eu gostava de cantar essa música como se tivesse saboreando as sílabas.
Olha, que bacana!
Então, acho que esse disco tem um pouco a ver com esse modo de cantar, de estar interpretando cada sílaba com intensidade, com concentração.
Seria um disco contemplativo por consequência?
Não sei... Tem gente que poderia dizer que é mais contemplativo, intimista. Eu prefiro dizer que é um disco mais sereno, menos dançante, menos pesado, mais doce, sei lá tem vários adjetivos que a gente pode dizer. Talvez seja contemplativo porque é um disco mais para ser ouvido do que para ser dançado.
Você escreveu que está em uma tonalidade próxima da fala. Esse processo é momentâneo ou há um empenho em busca de uma identidade como intérprete?
Acho que estou me encontrando, de alguma forma, como intérprete. Acho que é um pouco de aposta num tipo de interpretação. Nos ''Tribalistas'', por exemplo, foi um momento de maior identificação com esse tipo de canto. Acho que ali aprendi muito cantando com Marisa Monte e Carlinhos Brown...Acho que esse disco tem uma certa maturidade como intérprete de achar uma forma de canto muito adequada à minha voz e ao que quero exprimir.
De certa forma sua voz funciona como percussão, pelo timbre grave. Em outras palavras, sua voz faz uma pontuação percussiva, não?
(riso) É bacana você falar isso. Quem diz isso também é o Carlinhos Brown: ''Arnaldo você é percussionista das sílabas''. Que maravilha!
Uma curiosidade: como funciona a dinâmica dos Tribalistas: Marisa e Carlinhos vêm com música e você com letra, como é?
Não há uma fórmula nem função muito demarcada. Nós três fazemos melodias, letras e muitas vezes fazemos na hora, tudo mundo dando palpite na divisão, na linha melódia, na letra. Geralmente partimos de uma melodia que alguém traz ou que fazemos na hora. O que existe de real é uma sintonia muito grande, uma afinidade, um completa o outro e muita liberdade de, por exemplo, jogar idéias fora. Um serve de filtro para o outro e vamos chegando ao resultado devagarinho.
Nem sempre o nome de um disco o resume. ''Qualquer'', a canção, resume o projeto ou é para soar, digamos, provocativo?
Acho que é mais provocativo do que para resumir o disco. Não é um álbum que tenha um conceito traduzido por essa palavra. Tem uma provocação: ''Ah, é um disco qualquer''. Claro que não é qualquer, é um disco especial como todos os que faço. Eu gosto de títulos enxutos - ''Ninguém'', ''Nome'', ''Saiba'', etc. Sempre há um jogo entre o título e o disco como um todo. Agora, a música ''Qualquer'' tem mensagem clara que fala de você não ter certezas fixas, acreditar na coisa do movimento, de qualquer coisa que não fique ilesa, qualquer coisa que fixe-se.
Para muitas pessoas, um disco de Arnaldo Antunes imediatamente remete às letras. E há sacadas geniais suas e de outras pessoas. Você faz letras para música e poesia para livros ou depende da suscetibilidade de quem lê ou ouve?
Olha, é muito diferente letra para ser cantada e algo para ser publicado...
Mas no disco há poemas musicados como ''As Coisas'' e ''Hotel Fraternité''...
São linguagens diferenciadas... Mas claro que existe uma intersecção entre essas duas atividades. Então, muitas vezes coisas que fiz como canção posso publicar num livro em outra versão graficamente transformada e ser um poema...Então existe um movimento porque são atividades que trabalham com a matéria verbal. Mas não dá para dizer que é a mesma coisa porque são meios de veiculação diferentes, são universos diferenntes... Uma peça para tocar no rádio é diferente de uma peça para se ler num livro porque há um tempo de absorção diferente. Portanto, são linguagens que estão em permanente dialógo, mas que não são a mesma coisa.
Para encerrar, já tem candidato a Presidente da República?
Cristóvam Buarque.
E num eventual segundo turno?
Não sei, aí eu não sei. Não fiquei animado em votar no Lula, aliás, votei nele todas as vezes em que foi candidato à Presidência da República, mas não fiquei muito feliz com o governo dele - escândalos, denúncias de corrupção. De qualquer forma, eu não me animo nem um pouco em votar no (Geraldo) Alckimin. O Cristóvan Buarque tem um discurso interessante sobre educação. Sei que é um candidato que não tem nenhuma chance de vencer, mas gostaria que tivesse uma votação mais expressiva. Cheguei a pensar em votar nulo por indignação com a classe política de uma forma geral, mas também não me entusiasmou.
E não se animou nem um pouco em votar na Heloísa Helena?
(Risos) Nem um pouco.