Futebol

Sucesso em torneios nacionais na Europa, ligas fracassaram no Brasil

25 abr 2021 às 16:01

Não é exatamente nova a discussão que explodiu no futebol no último final de semana. Embora a proposta da Superliga europeia tenha levado a questão a um patamar inédito, o que gerou forte reação e fez o plano ser suspenso, a ideia de clubes ganharem independência das federações e organizarem as próprias competições já é posta em prática em vários países.


O exemplo mais bem-acabado é o da Premier League, que organiza o Campeonato Inglês desde 1992 e o transformou na principal competição nacional do planeta. Torneios considerados fortes, como o Campeonato Espanhol (La Liga), o Campeonato Alemão (Bundesliga) e o Campeonato Italiano (Serie A), seguem modelo semelhante.


Nem tudo vai bem e o sistema não é à prova de falhas. Mas a estabilidade desses campeonatos nacionais e o dinheiro que arrecadam oferecem claro contraste em relação às tentativas realizadas no Brasil de adotar organização mais ou menos similar.


A própria palavra "organização" parece deslocada do que se viu nas experiências brasileiras de ligas de clubes. Da Copa União, versão do Campeonato Brasileiro gestada pelo Clube dos 13 em 1987, às experiências mais recentes, como a Primeira Liga, que administrou torneios irrelevantes em 2016 e 2017, os esforços se mostraram desastrados e de curta duração.


A confusão de 1987 é bem documentada e alimenta discussões que já duram mais de três décadas. Na ocasião, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) avisou que não tinha dinheiro para promover o Brasileiro. Treze agremiações formaram o Clube dos 13 naquele ano e anunciaram que disputariam um campeonato organizado por eles mesmos.


A confederação, então, mudou de ideia, e resolveu voltar à competição. Costurou-se um acordo, que se mostraria frágil, e a Copa União ganhou três convidados -que se juntaram aos fundadores do Clube dos 13, totalizando 16 participantes. Uma espécie de segunda divisão foi organizada pela CBF com os times que não estavam na Copa União.


A CBF criou um regulamento que previa o cruzamento do campeão e do vice da Copa União, chamada de módulo verde, com o campeão e o vice do módulo amarelo, considerado de segundo nível. Com brigas políticas e judiciais que viraram o século, esse cruzamento jamais ocorreu, e até hoje Flamengo e Sport se consideram campeões brasileiros de 1987.


O campeonato nacional voltou a ser integralmente gerido pela CBF em 1988, e a ideia de liga permaneceu dormente por alguns anos, até retomar força na década seguinte. Em 1997, os integrantes do Clube dos 13, que já eram 16, chegaram a debater a criação de uma nova Copa União. Em seguida, Pelé passou a ser uma figura importante na discussão.


Ministro do Esporte entre 1995 e 1998, o craque havia estabelecido na chamada Lei Pelé, de 1998, liberdade aos clubes para organizar suas competições. Em 1999, sua empresa de marketing esportivo chegou a negociar com parceiros estrangeiros a criação de uma "superliga brasileira", independente da CBF, e foi alvo de duras críticas.


"Ele pensa que, porque foi o rei do futebol, é o rei de tudo. Primeiro, faz a lei sem ouvir ninguém, da cabeça dele. Agora, quer fazer a liga da cabeça dele também", esbravejou o presidente do Clube dos 13, Fábio Koff. "Não é uma pessoa que pode criar uma liga, que deve ser criada de baixo para cima, pelos clubes. O Vasco está fora", afirmou o presidente do clube carioca, Eurico Miranda.


"Eles perderão a mamata", respondeu Pelé. "Sou contra a maneira como é administrado o futebol brasileiro. Infelizmente, a maioria dos dirigentes, eu não digo 100%, é corrupta. Eles não poderão negociar, não poderão ganhar dinheiro. Tudo o que inibe a facilidade de grana para esses caras eles vão achar ruim, lutar contra."


O plano do ex-jogador não foi adiante, mas a organização do Brasileiro sem a CBF acabou, por questões judiciais, tornando-se uma necessidade em 2000. Rebaixado no tapetão em 1999, o Gama entrou na Justiça comum para evitar a segunda divisão, ganhou o direito de ficar na primeira e criou um impasse.


A solução encontrada foi transferir a administração do torneio novamente ao Clube dos 13. Formulou-se uma disputa inchada, caótica, com 116 times divididos em quatro módulos. O torneio teve novas batalhas judiciais, públicos pequenos nos estádios e na TV, problemas de calendário e uma quase tragédia.


Na decisão entre Vasco e São Caetano, o alambrado do estádio de São Januário cedeu, e houve uma avalanche de pessoas na direção do gramado. Foram registrados mais de 200 feridos e, incrivelmente, nenhuma morte. O Clube dos 13 resolveu remarcar a final e realizá-la já em janeiro de 2001, antes de devolver a competição à CBF.


O conceito de liga de clubes sobreviveu ao incidente e foi testado em nível regional, em 2002, quando torneios interestaduais ganharam espaço no calendário. Anunciado com pompa, o tradicional Rio-São Paulo foi organizado pelos próprios times, cresceu, reuniu 16 participantes e passou a ser chamado de Liga Rio-São Paulo.


Em uma dessas contradições que só o Brasil parece capaz de produzir, a liga de agremiações paulistas e fluminenses era presidida por aquele que também era o presidente da FPF (Federação Paulista de Futebol), Eduardo José Farah. Concorrente de si mesmo, ele tinha a missão de dar destaque à disputa interestadual e também a de fazer o Campeonato Paulista ter relevância.


A experiência, mais uma vez, foi breve. Em 2003, uma reformulação geral do calendário nacional ampliou o Brasileiro, deu sobrevida às disputas estaduais e tirou o espaço dos certames regionais. O Rio-São Paulo jamais foi realizado novamente. E a ideia das ligas de clubes voltou a um estado de dormência até retornar à pauta nos anos 2010.


Na década passada, já estava claro o ponto central do debate, o mesmo observado na Europa no contexto da criação das ligas nacionais e na ora suspensa investida da Superliga. A questão é a divisão do bolo de dinheiro proveniente dos campeonatos, sobretudo os multimilionários ou até bilionários direitos de transmissão das partidas pela televisão.


Foi com essa preocupação que clubes de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná revisitaram a ideia da Copa Sul-Minas, um dos torneios regionais disputados até 2002. Flamengo e Fluminense, incomodados com a distribuição do dinheiro do Campeonato Carioca, juntaram-se ao grupo: a Sul-Minas virou Sul-Minas-Rio e passou a se chamar Primeira Liga.


"É um passo gigantesco. É assim no mundo aí fora, onde o futebol deu certo. Estamos atrasados", disse o presidente do Cruzeiro, Gilvan de Pinho Tavares, que foi empossado presidente na fundação da Primeira Liga, em 2015, e apontou nela o embrião para a formação de uma verdadeira liga nacional.


A realidade, porém, foi distante disso. Houve empecilhos criados pela CBF e pelas federações estaduais, às quais o sucesso da competição não interessava, e os próprios dirigentes das equipes tiveram múltiplos desentendimentos. A experiência da Primeira Liga acabou sendo curta, com torneios de pouco prestígio realizados em 2016 e 2017.


Ficou restrita ao nome a proximidade buscada com a Premier League, criada em 1991 e responsável pela transformação do futebol inglês nas últimas três décadas. No caso da Inglaterra, a liga não tirou da organização a federação local. Substituiu outra liga, velha e corrupta, instituindo profissionalismo e critérios técnicos que mudaram a cara do campeonato.


Em outros casos, os clubes assumiram um espaço que era da federação. Na Alemanha, isso ocorreu em 2000, um momento considerado chave para o crescimento do Campeonato Alemão e para a formação de jogadores que conquistariam a Copa do Mundo de 2014, no Brasil, fazendo 7 a 1 nos anfitriões no caminho para a taça.


Na Inglaterra, na Alemanha e nos demais países que operam com sucesso o modelo de liga de clubes no futebol europeu, a competição organizada pelos times está integrada a um sistema de acesso e descenso com divisões inferiores, geralmente administradas pelas federações, com regras bem-estabelecidas.


Não houve esse critério técnico nas experiências brasileiras, com aberrações como o Guarani, vice-campeão brasileiro de 1986, obrigado a disputar a segunda divisão de 1987. Também não houve rebaixamento naquela Copa União ou na Copa João Havelange, concluída com um time que partiu da segunda divisão para a final em um mesmo campeonato, o São Caetano.


A ausência de critérios técnicos claros foi justamente um dos motivos que levaram a Superliga da Europa a receber tantas críticas, já que seus fundadores teriam lugar cativo na disputa. Formada por alguns dos times mais ricos do mundo, ela seguia uma lógica de concentração ainda maior de poder e dinheiro.


A ideia não foi para a frente, mas a briga europeia persiste. É uma espécie de cabo de guerra com múltiplas pontas, puxada com força pelos clubes mais poderosos, pelas entidades internacionais do futebol, Uefa e Fifa, e até por Estados nacionais. Não conseguem a mesma tração os times menores, dependentes de mecanismos de solidariedade para receber sua fatia do bolo.

No Brasil, é também gritante a desigualdade entre as agremiações economicamente mais poderosas e aquelas sem a mesma capacidade de gerar receitas. Por aqui, porém, as tentativas dos clubes de assumir a organização se mostraram quase sempre desastradas, e a CBF conseguiu até aqui manter sua posição privilegiada, batendo seguidos recordes de arrecadação.


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