Há dez anos fazendo pesquisas sociais sobre a prática de aborto no Brasil, a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), está investigando os caminhos percorridos pelas mulheres para fazerem aborto ilegal. O objetivo do estudo, assim como o da primeira Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), feita há dois anos, "é poder instrumentalizar a política de saúde no Brasil".
Débora Diniz assina novos artigos na Revista Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Pública (Abrasco), a ser publicada no próximo mês. Antes de viajar para Nova York, onde participa de uma reunião de trabalho, a antropóloga conversou com a Agência Brasil sobre as políticas de saúde da mulher e o atendimento médico-hospitalar nos casos de aborto ilegal. A seguir, os trechos principais da entrevista:
Agência Brasil: Conforme os artigos da revista da Abrasco, as restrições ao aborto não têm sido eficientes nem para evitar a prática nem para proteger a saúde das mulheres. Apesar dessas evidências assinaladas há algum tempo, a percepção condenatória sobre o aborto da sociedade brasileira não muda. Por quê?
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Débora Diniz: Cada vez mais caminhamos em direção a ter argumentos sólidos sobre o impacto para a saúde pública e para a saúde das mulheres do aborto inseguro e ilegal. No entanto, a realidade e as políticas públicas no Brasil mudaram muito pouco, e são argumentos contrários que sustentam esse marco restritivo, esses argumentos que pararam no tempo. Argumentos de ordem moral e de ordem religiosa que sustentam que o aborto deva ser ilegal, que seria um atentado contra uma vida em potencial.
ABr: Um dos artigos da revista aponta que nas reportagens e matérias sobre aborto há mais fontes de informação masculinas do que femininas, há muito mais religiosos do que cientistas ouvidos. Isso contribui para a visão restritiva?
Débora: O artigo faz uma análise do enquadramento da mídia, da imprensa brasileira durante as eleições de 2010. O texto mostra que há uma total superficialidade no enfrentamento da questão. Além disso, mostra que as vozes que são convidadas a falar sobre aborto ou opinar são homens, autoridades religiosas, essencialmente católicas. Isso mostra uma longa permanência de quem são as vozes autorizadas a falar com os políticos sobre o aborto no Brasil.
ABr: O quanto dessa visão restritiva pode favorecer a mortalidade das mulheres e o mau atendimento médico-hospitalar?
Débora: O que esse número especial da Revista Ciência & Saúde Coletiva mostra é uma série de estudos sistemáticos com evidências científicas sobre os impactos do aborto ilegal para a saúde das mulheres. Essencialmente o que esses estudos mostram? O primeiro é que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto. Isso significa que o aborto é um fato, um fenômeno, um evento comum na vida de mulheres também comuns. O que os estudos mostram é que metade dessas mulheres utiliza medicamentos para fazer aborto, e a outra metade precisou ficar internada para terminar o aborto. Isso significa um enorme impacto nos sistemas de saúde para a realização de um aborto que foi iniciado em condições inseguras, ilegais, com medo e redes de suporte que muitas vezes não sabemos como se constituem. Não sabemos onde as mulheres têm acesso aos medicamentos, como fazem uso das doses e em que momento decidem ir ao hospital. No entanto, sabemos que quando essas mulheres chegam aos hospitais enfrentam nova barreira. Barreira de riscos de discriminação, maus-tratos e de abandono pelos serviços de saúde. Alguns estudos do número temático mostram que, quanto mais jovem a mulher, maior o risco de maus-tratos nos hospitais. Até porque elas, comparadas às mais velhas, são diretamente as que contam mais a verdade para os médicos e enfermeiras. Ignorar esse conjunto de dados é ignorar evidências que são capazes de alterar não só a proteção aos direitos humanos das mulheres no Brasil, como a garantia ao direito à saúde.
ABr: Até que ponto a visão mais restritiva afeta as atitudes dos médicos na rede pública?
Débora: Há no Brasil um movimento, não só no Brasil, mas na América Latina, crescente que se chama Recurso de Assistência às Mulheres em Situação de Aborto. Esse é um exemplo dessa visão moralista. As mulheres chegariam [a hospitais] em processo de abortamento e os médicos, ao identificar e saber por elas que induziram o aborto em situação ilegal, deixariam-nas em processo de sofrimento como expiação [penitência] de uma culpa. Há outros relatos de serviços de aborto legal, previsto em lei, e médicos, anestesistas vêm recorrentemente alegando objeção de consciência, recurso de assistência por razões morais para não atender às mulheres em situação de aborto. Me parece que há um equívoco importante dentro desse debate, o direito à liberdade de crença, de que suas crenças morais e individuais devem ser inalienáveis a todos nós. No entanto, a assistência, o dever da proteção ao direito à saúde em um hospital público, ao serviço de aborto legal, serviço previsto em lei, deve ser soberano e inalienável às mulheres. Serviços de saúde têm que garantir a assistência das mulheres. Se médicos individuais têm resistência ao aborto, que isso possa ser negociado, não vão ao serviço e não componham essas equipes. Mas, uma vez que essa mulher entra no serviço, ela tem que ser atendida sem qualquer imposição de barreira.
ABr: Além do microcosmo do hospital, essa visão moralista influencia os nossos tomadores de decisão. Por quê?
Débora: Porque nós estamos falando de estruturas de poder. As comunidades religiosas cada vez mais têm maior participação na esfera política brasileira, não só na esfera pública. O aborto é uma moeda de troca como todas as questões relacionadas à sexualidade. Um fenômeno muito parecido vimos no episódio dos kits anti-homofobia [após pressão de grupos religiosos, o governo suspendeu a produção do material que seria distribuído nas escolas].
ABr: Há diferença de comportamento quanto ao aborto entre mulheres de classes, idade e estado civil diferentes?
Débora: Na Pesquisa Nacional de Aborto, quando nós cobríamos todo o Brasil urbano, encontramos mulheres com os três extratos educacionais que igualmente abortavam. O que alguns estudos mostram é que mulheres com menor nível educacional abortam com práticas de maior risco do que aquelas com escolaridade mais elevada. Mas esses são estudos que cruzam com amostras muito pequenas e localizadas.