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E tudo se acabar na quarta-feira

10 fev 2016 às 16:57

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"Bom dia, súditos de Momo, povo desse reino encantado onde não há inflação, recessão e nem corrupção. Bom dia a todos que já acordaram do delírio coletivo carnavalesco para o encontro com a realidade! Bom dia a todos!"
(Alexandre Kireeff, prefeito de Londrina, em mensagem publicada hoje no Facebook)


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A Quarta-Feira de Cinzas também poderia ser chamada de Dia da Conversão. Na visão cristã, a data de hoje simboliza o necessário exame de consciência e a mudança de rumos pelos quais todo ser humano deveria passar para a conquista da salvação eterna. Na literatura ocidental, o poema Ash Wednesday (Quarta-Feira de Cinzas), publicado pelo escritor anglo-americano T. S. Eliot em 1930, talvez seja a melhor síntese da conversão espiritual em nosso tempo. Só esse pequeno poema já tornaria Eliot um dos maiores autores do século XX; no entanto, ele ainda fez muito mais, seja no campo da poesia, do teatro, da crítica literária ou da análise cultural.

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Há 90 anos, muito provavelmente na Quarta-Feira de Cinzas que caiu no dia 17 de fevereiro de 1926, o escritor e bancário Thomas Stearns Eliot fazia uma viagem de férias a Roma, acompanhado da irmã e do cunhado. Para surpresa dos parentes que o acompanhavam, o escritor, que até aquele momento da vida demonstrara ser agnóstico ou mesmo abertamente ateu, caiu de joelhos diante da estátua da Pietà, de Michelangelo, e mergulhou em uma profunda oração. No ano seguinte, Eliot seria batizado e crismado na Igreja Católica Anglicana e começaria a publicar as seis seções de que seria constituído o poema Ash Wednesday.

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Eram os difíceis anos do entre-guerras, quando a civilização se encontra mergulhada em grandes dúvidas e angústias, com a grande depressão econômica, o hedonismo dos "anos loucos", a crise do modelo liberal e a ascensão dos totalitarismos nazifascista e comunista. Dentro desse quadro caótico, que Eliot descreveu no célebre poema The Waste Land (A Terra Desolada), de 1922, o autor viveu uma conversão religiosa que pareceu inexplicável a grande parte de seus admiradores. Onde estava aquele Eliot pessimista e desesperado que só via trevas e ruínas por toda parte?


A resposta era simples: aquele Eliot estava evoluindo. Deixara para trás o desespero do passado:

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Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?


Homem dotado de uma poderosa imaginação moral, capaz de transformar em poesia de primeira qualidade as grandes inquietações de seu tempo, o autor de Quarta-Feira de Cinzas percebeu que o retorno às verdades da fé seria a única forma de sobreviver à realidade caótica do mundo ao redor. Tal como veio a afirmar Eric Voegelin em outro contexto, Eliot, diante da confusão do mundo, opôs uma alma ordenada.

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Com o respeito e admiração que já conquistara em todo o mundo intelectual europeu — infelizmente ignorados por seus patrões no Lloyds Bank, onde trabalhava como modesto escriturário —, Eliot fez com que muitos talentos da nova geração retornassem ao cristianismo, numa época em que tantos mergulhavam nas ilusões do comunismo, do fascismo ou do desespero. O poeta intuiu que as todas almas com talento buscam algum tipo de fé, e que se essas pessoas rejeitam as grandes tradições religiosas, fatalmente acabarão abraçando a pseudo-religião da ideologia ou da cultura revolucionária.


Para escândalo dos comunistas, ateus e desesperados de sua época, T. S. Eliot não apenas aderiu à fé cristã, como também permitiu que um de seus símbolos mais fortes — Maria, a Mãe de Deus — tivesse um espaço privilegiado em sua poesia. Como afirma Russell Kirk, biógrafo de Eliot, Quarta-Feira de Cinzas não é um poema dirigido à comunidade, mas à consciência humana. Após falar sobre os ferimentos do corpo e da alma causados pelo pecado — sendo as tentações da carne, do mundo e do demônio simbolizadas como três leopardos brancos —, o narrador do poema se define como um punhado de ossos e alma sobreviventes… e conscientes. E são justamente os ossos que entoam a seguinte oração:

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Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exânime e instigante
Atormentada tranqüila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
Extinto o tormento
Do amor insatisfeito
Da aflição maior ainda
Do amor já satisfeito
Fim da infinita
jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.


Além de transformar em versos algumas passagens da liturgia católica — "Eu não sou digno, mas dizei uma palavra" — e da própria Ave-Maria — "Agora e na hora de nossa morte" —, Eliot utiliza sua genial capacidade de criar símbolos poéticos para criar o que eu chamaria de pequena catedral literária de nosso tempo. A grande catedral viria depois, com a publicação dos Quatro Quartetos, dos quais falaremos em outra oportunidade. Mais uma prova de que a Quarta-Feira de Cinzas, ao contrário do que dizia a canção de Vinicius de Moraes, não é o dia em que tudo acaba. É o dia em que tudo começa.


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(Nota: Nas citações do poema, utilizei a tradução de Ivan Junqueira para o português.)


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