"Bom dia, súditos de Momo, povo desse reino encantado onde não há inflação, recessão e nem corrupção. Bom dia a todos que já acordaram do delírio coletivo carnavalesco para o encontro com a realidade! Bom dia a todos!"
(Alexandre Kireeff, prefeito de Londrina, em mensagem publicada hoje no Facebook)
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A Quarta-Feira de Cinzas também poderia ser chamada de Dia da Conversão. Na visão cristã, a data de hoje simboliza o necessário exame de consciência e a mudança de rumos pelos quais todo ser humano deveria passar para a conquista da salvação eterna. Na literatura ocidental, o poema Ash Wednesday (Quarta-Feira de Cinzas), publicado pelo escritor anglo-americano T. S. Eliot em 1930, talvez seja a melhor síntese da conversão espiritual em nosso tempo. Só esse pequeno poema já tornaria Eliot um dos maiores autores do século XX; no entanto, ele ainda fez muito mais, seja no campo da poesia, do teatro, da crítica literária ou da análise cultural.
Há 90 anos, muito provavelmente na Quarta-Feira de Cinzas que caiu no dia 17 de fevereiro de 1926, o escritor e bancário Thomas Stearns Eliot fazia uma viagem de férias a Roma, acompanhado da irmã e do cunhado. Para surpresa dos parentes que o acompanhavam, o escritor, que até aquele momento da vida demonstrara ser agnóstico ou mesmo abertamente ateu, caiu de joelhos diante da estátua da Pietà, de Michelangelo, e mergulhou em uma profunda oração. No ano seguinte, Eliot seria batizado e crismado na Igreja Católica Anglicana e começaria a publicar as seis seções de que seria constituído o poema Ash Wednesday.
Eram os difíceis anos do entre-guerras, quando a civilização se encontra mergulhada em grandes dúvidas e angústias, com a grande depressão econômica, o hedonismo dos "anos loucos", a crise do modelo liberal e a ascensão dos totalitarismos nazifascista e comunista. Dentro desse quadro caótico, que Eliot descreveu no célebre poema The Waste Land (A Terra Desolada), de 1922, o autor viveu uma conversão religiosa que pareceu inexplicável a grande parte de seus admiradores. Onde estava aquele Eliot pessimista e desesperado que só via trevas e ruínas por toda parte?
A resposta era simples: aquele Eliot estava evoluindo. Deixara para trás o desespero do passado:
Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?
Homem dotado de uma poderosa imaginação moral, capaz de transformar em poesia de primeira qualidade as grandes inquietações de seu tempo, o autor de Quarta-Feira de Cinzas percebeu que o retorno às verdades da fé seria a única forma de sobreviver à realidade caótica do mundo ao redor. Tal como veio a afirmar Eric Voegelin em outro contexto, Eliot, diante da confusão do mundo, opôs uma alma ordenada.
Com o respeito e admiração que já conquistara em todo o mundo intelectual europeu infelizmente ignorados por seus patrões no Lloyds Bank, onde trabalhava como modesto escriturário , Eliot fez com que muitos talentos da nova geração retornassem ao cristianismo, numa época em que tantos mergulhavam nas ilusões do comunismo, do fascismo ou do desespero. O poeta intuiu que as todas almas com talento buscam algum tipo de fé, e que se essas pessoas rejeitam as grandes tradições religiosas, fatalmente acabarão abraçando a pseudo-religião da ideologia ou da cultura revolucionária.
Para escândalo dos comunistas, ateus e desesperados de sua época, T. S. Eliot não apenas aderiu à fé cristã, como também permitiu que um de seus símbolos mais fortes Maria, a Mãe de Deus tivesse um espaço privilegiado em sua poesia. Como afirma Russell Kirk, biógrafo de Eliot, Quarta-Feira de Cinzas não é um poema dirigido à comunidade, mas à consciência humana. Após falar sobre os ferimentos do corpo e da alma causados pelo pecado sendo as tentações da carne, do mundo e do demônio simbolizadas como três leopardos brancos , o narrador do poema se define como um punhado de ossos e alma sobreviventes e conscientes. E são justamente os ossos que entoam a seguinte oração:
Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exânime e instigante
Atormentada tranqüila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
Extinto o tormento
Do amor insatisfeito
Da aflição maior ainda
Do amor já satisfeito
Fim da infinita
jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.
Além de transformar em versos algumas passagens da liturgia católica "Eu não sou digno, mas dizei uma palavra" e da própria Ave-Maria "Agora e na hora de nossa morte" , Eliot utiliza sua genial capacidade de criar símbolos poéticos para criar o que eu chamaria de pequena catedral literária de nosso tempo. A grande catedral viria depois, com a publicação dos Quatro Quartetos, dos quais falaremos em outra oportunidade. Mais uma prova de que a Quarta-Feira de Cinzas, ao contrário do que dizia a canção de Vinicius de Moraes, não é o dia em que tudo acaba. É o dia em que tudo começa.
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(Nota: Nas citações do poema, utilizei a tradução de Ivan Junqueira para o português.)