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Uma singela homenagem

10 jul 2009 às 07:46
- Sérgio Ranalli
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A História do Chatô Caipira

Tem de tudo no currículo de João Milanez, um homem da roça e de pouco estudo que fundou jornal, rádio e televisão no Paraná. Ele fez fama, integrou comitivas presidenciais, visitou mais de centena de países e foi acusado, veementemente, por Dercy Gonçalves de tê-la estuprado quando ela já beirava os setenta anos de idade. Ele já passou das oito décadas de vida, mas parece um rapazote quando é convidado a narrar seus causos e sua história de muito trabalho.

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Por Wilhan Santin Fotos Sergio Ranalli

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Descanse em paz, João.


Em uma das últimas visitas do governador do Paraná, Roberto Requião, a Londrina, dezenas de repórteres se acotovelavam para entrevistar o político conhecido pelo seu mal-humor no trato com os jornalistas. Era missão difícil chegar perto do homem. De repente, um senhor com 85 anos de idade, passos lentos, mas voz firme ecoando "viva, viva, viva", um de seus bordões, passa pelo meio de todo mundo, como faca quente passa pela manteiga. "Está aqui um grande governador", disse quando chegou ao seu interlocutor. "Ora, é João Milanez, o amante da Dercy Gonçalves", respondeu Requião, num raro momento de sorriso no rosto.
A cena de João Milanez cumprimentando uma autoridade política já é tradição no Paraná, mais particularmente em Londrina, cidade na qual ele fundou um diário há mais de 60 anos, a Folha de Londrina. Antes, era no aeroporto que ele cumprimentava os engravatados que desciam na "Capital Mundial do Café". Hoje, prefere as reuniões ou solenidades públicas.
Trata-se de um homem da roça, nascido na pequenina Meleiro, extremo sul de Santa Catarina, que conheceu mais de 150 países e integrou comitivas presidenciais. Nos arquivos do jornal que ele fundou não faltam fotos em que apareça ao lado de gente de fama: Juscelino Kubistchek, Vera Fischer, Delfim Netto, Chacrinha, Ernesto Geisel, Alfredo Stroessner... Da sua boca, saem histórias engraçadas, irreverentes, fatos que o acompanharam durante toda a sua vida. Fala com tanta desenvoltura das centenas de mulheres que teve, da zona do meretrício que funcionou em Londrina – a qual ele não frequentava, só visitava - e de outras peripécias que cometeu durante a vida. Se o repórter bobeia, acaba se esquecendo de questioná-lo sobre a carreira de empresário e jornalista que construiu, tornando-se, à melhor moda interiorana, uma espécie de Assis Chateaubriand do sertão, ou um "chatô caipira".
Na certidão de nascimento, consta que Milanez nasceu em 15/12/1925, mas na verdade o sexto filho de onze irmãos viera à luz dois anos antes, em 15/12/1923, quando a localidade de Rio Morto não passava de um lugarejo do então distrito, atualmente município, de Meleiro. O mesmo cartorário que o deixou dois anos mais novo também transformou o italianíssimo sobrenome Milanese em um quase espanhol Milanez. No sítio da família, cercado de um povo "tutti buona gente" aprendeu a mexer com a lavoura. Não passou da quarta série porque no tempo e no lugar em que viveu a infância e a adolescência ter o diploma do primário era quase como ser um doutor. Trabalhou também em serraria, onde foi marceneiro.
Aos 22 anos, colocou a trouxa nas costas e foi tentar a vida na efervescente São Paulo. "Tomei um susto. Era tudo grande demais, agitação, progresso. Queria trabalhar na construção civil, mas nem deu tempo de arrumar emprego", rememora o jornalista. Com poucos dias em Sampa, conheceu um amigo que lhe convidou para ir tentar a vida, vendendo títulos de capitalização, na terra vermelha, outro lugar efervescente, que nascera como uma picada aberta por ingleses na mata fechada apenas 18 anos antes. Era Londrina, embrenhada no Norte do Paraná.
Ele topou. De cara, bolou uma jogada de marketing. Aprendeu a falar saiken, o correspondente, em japonês, para título de capitalização. Dessa forma, fez clientela entre a turma de olhos puxados, que chegava ao Paraná para comprar terra própria depois de fazer um dinheirinho no Estado de São Paulo. "Eu falava saiken, os japoneses falavam no, no, no. Eu insistia e eles acabavam comprando". O tino comercial do "italiano" chamou a atenção de um tal Correia Neto, que se intitulava jornalista e estava começando um jornal semanal. "Ele me chamou para ser sócio. Eu vendia, ele escrevia".
Era a primeira vez que um jornal era levado a sério, sem estar a serviço de nenhum figurão, por ali. Com os pés atolados no barro, Milanez saiu vendendo assinaturas. Visitou de Paranavaí a Jacarezinho, num raio de 250 quilômetros, levando o seu "pasquim" a cada uma das cidadezinhas que a Companhia de Terras Norte do Paraná fundava a cada 15 ou 20 quilômetros. "Rapidinho consegui cinco mil assinantes. Entreguei todo o dinheiro para o sócio pagar credores em São Paulo. Porém, ele gastou tudo com farra. Daí, brigamos. Disse que queria desfazer a sociedade. Ele respondeu que eu tinha que comprar a parte dele. A única coisa que eu tinha era uma caneta Parker, foi com ela que o paguei".
Pão-duro assumido, o filho de Meleiro começou a tocar o jornal sozinho. Vendia, fotografava, participava de qualquer coisa que acontecesse em Londrina naquele fim de década de 1940, quando a cidade tinha perto de 20 mil habitantes e o café crescia chamado de ouro verde na terra fértil. Anotava tudo o que escutava, favorecido pelo fato de muitas coisas acontecerem na região naquele tempo. Depois, pagava para um advogado transformar suas anotações e relatos em textos. Foi o primeiro repórter do jornal, mas nunca assinou uma matéria.
O negócio prosperou como a cidade, que em menos de 80 anos de existência chegou aos 505 mil habitantes. "A Folha de Londrina apenas acompanhou o crescimento da cidade e da região", diz, com modéstia, Milanez. Mas se o crescimento populacional norte paranaense colaborou, o trabalho dele também foi importante. Fruto de suas primeiras andanças, a bordo de Jeep Willis nas estradas de terra, são os assinantes que hoje estão em 302 municípios do estado, recebendo uma tiragem que chega a 50 mil exemplares.

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Chacrinha, Flávio Cavalcanti e a fama

Com o dinheiro entrando no caixa, uma redação começou a ser formada. O jornal passou a ser diário e ganhou forma. A tipografia terceirizada foi dispensada. Milanez fez questão de montar a própria gráfica. E mais, financiou um conjunto de casas para seus gráficos morarem. Modernizar passou a ser obsessão. Na primeira oportunidade, comprou uma rotativa. Depois, na década de 1970, fez funcionar no Paraná a primeira máquina offset do Estado. Por conta disso, teve problemas. Os caminhões com as bobinas de papel atolavam antes de chegarem a Londrina. Para por o jornal na rua era preciso fazer o papel terminar de chegar de jipe.
Como já não precisava ir às ruas fazer a função de repórter pôde passar a desempenhar o seu melhor papel: relações públicas. Sempre com uma "Folha" debaixo do braço, não perdia uma oportunidade de divulgar o seu jornal. "Ele não tinha vergonha. Onde quer que estivesse, não importava para quem, entregava um exemplar", conta o jornalista e historiador Widson Schwartz, que trabalhou 16 anos, com o "patrão", apelido carinhoso que os jornalistas deram a Milanez.
Dessa forma, construiu bons relacionamentos com todo mundo. Encampou diversos movimentos a favor do estado e da cidade. Enquanto isso, deixava a mulher, Marlene, sua grande companheira, cuidando de boa parte da administração. Ela também uma excelente relações públicas. "O patrão gostava de acompanhar a equipe de reportagem na rua. Enquanto o jornalista fazia seu trabalho, ele ficava de ouvidos em pé, sempre pegava algo no ar. Dali a pouco, aparecia com alguém pelo braço para o repórter entrevistar. Apesar de buscar bons relacionamentos com todos, não barrava matérias de denúncia. Quando via que algo assim ia ser publicado, inventava uma viagem para não escutar reclamações de políticos. O prestígio dele chegou a tal nível que o Garcia Neto, governador do Mato Grosso, mandou um avião vir buscá-lo para recepcionar o presidente Geisel em Campo Grande", rememora Schwartz.
"Nunca fui contestador, talvez por isso tenha conseguido tanto prestígio", teoriza Milanez. De fato, ele nunca foi de cultivar rusgas, prefere ganhar na conversa. Com Requião brigou publicamente em 1991, quando o político foi governador pela primeira vez e deixou de pagar credores do Estado, entre eles a Folha de Londrina. Mas nem por isso deixa de chamá-lo de "grande governador".
Na década de 1970 virou figurinha carimbada nas televisões. Foi jurado de Flávio Cavalcanti, passou a freqüentar o Cassino do Chacrinha e recebeu o troféu "Velho Guerreiro". Julgou dezenas de mulheres nos mais diversos concursos de misses. Começaram a surgir os convites para integrar comitivas empresariais e políticas em viagens estrangeiras. "Conheci de tudo que há no mundo. Porém, onde mais me diverti foi nos Estados Unidos. Eu só sabia uma palavra em inglês: good. Respondia good para tudo que diziam", diverte-se.
Com seu jeito desbocado e expansivo, quebrava protocolos, metia-se no meio de reuniões que eram só para gente de altos cargos da República. Quando via que a entrada seria difícil, apresentava-se aos seguranças e porteiros como governador do Amazonas. E entrava. "Imagina, naquele tempo ninguém conseguia contato telefônico com Manaus para checar se eu era mesmo o governador. Então, era mais fácil me deixar entrar". Assim, fez amigos influentes, entre eles Delfim Netto, que foi ministro da Fazenda de 1969 a 1974, o chamado período do milagre econômico brasileiro.
Com o próprio Assis Chateaubriand conversou pessoalmente algumas vezes. "Só falávamos sobre Jornalismo. Ele sempre queria falar sobre Jornalismo. É claro que não tem comparação entre o império que ele construiu e o que eu construí. Chateaubriand teve uma grande importância para a nação. Fico muito orgulhoso quando me comparam com ele", ressalta.
Em 1979, Milanez resolveu seguir os passos de Chatô e quis ter a sua própria televisão. Tomou um empréstimo de um milhão de dólares. Queria, como no jornal, ter a melhor tecnologia. Fundou a TV Tarobá, de Cascavel, afiliada da Rede Bandeirantes. "O João Saad – dono da Bandeirantes – elogiou muito a TV", orgulha-se. No entanto, o cruzeiro desvalorizou-se rapidamente e as dívidas contraídas para instalar a Tarobá se multiplicaram. A única saída foi vender, em 1982.
No mesmo ano, já separado de dona Marlene "por incompatibilidade de gênios", resolveu deixar a administração do jornal na mão de sobrinhos "importados" de Meleiro e ser "embaixador de seus negócios em Curitiba". "Da mesma forma que ele era ‘rato de evento’ em Londrina, passou a ser ‘rato de evento’ na capital", conta o único filho, João Rodrigo, o "menino" de 30 anos que Milanez não cansa de dizer que é de ouro. Afastado da administração, viu problemas financeiros atrapalharem o jornal. Voltou para Londrina quando a situação estava difícil, no início da década de 1990. A salvação foi arrumar um sócio: José Eduardo de Andrade Vieira, que foi senador, ministro e dono do Bamerindus.
Vivendo da aposentadoria e das divisas que cabem ao sócio minoritário, atualmente Milanez vive a se queixar da falta da correria em que vivia até há pouco tempo. Uma queda há um ano lhe rendeu fraturas em um dos ombros e a necessidade de cuidado constante de auxiliares de enfermagem. Mas o aperto de mão continua firme. A gentileza também. O repórter é chamado de doutor o tempo todo. Para a mente, joga bridge, um jogo de cartas que requer raciocínio. Para a alma, frequenta reuniões e solta o seu viva, viva, viva.


O estupro de Dercy Gonçalves


Entre todas as histórias de João Milanez, a mais famosa é a que envolve Dercy Gonçalves. O jornalista sempre cultivou a fama de mulherengo. Gosta de dizer que centenas de mulheres passaram pela sua cama. Gaba-se de ter sido um exímio galanteador. Com a vedete não foi diferente, sorri a cada vez que conta que transou com Dercy quando ela esteve em Londrina para fazer um show no início da década de 1970. Até aí tudo bem. O problema é que Dercy morreu acusando-o de estupro. Na última entrevista que deu a Amaury Junior, cinco dias antes de sua morte, em julho de 2008, ela contou mais uma vez a história que já havia contado muitas outras vezes na imprensa. "O João Milanez, da Folha de Londrina, me estuprou!".
"Eu não estuprei. Ela quis! Tratei-a como uma grande dama quando ela esteve aqui. Levei-a no jornal e mandei fazer uma boa matéria. Depois do show, convidei e ela topou ir ao motel. Mas não tem problema que ela tenha dito tantas vezes que foi estupro. É bom porque faz propaganda minha", diz o empresário, sem esconder o orgulho.
Quem se recorda bem dessa passagem é o escritor Domingos Pellegrini, que um dia foi repórter da Folha de Londrina, começando como foca. "Servir sempre foi o sentido do Jornalismo para Milanez, fosse para atender gente pé-de-chinelo ou participar de grandes campanhas comunitárias. Mas desconfio que usou o repórter, quando já não era mais foca, para cometer o famoso ‘estupro da Dercy Gonçalves’. Levou Dercy à redação, chamou o repórter, dizendo que ela merecia uma entrevista feita por um escritor. Ela realmente gostou de não ouvir perguntas bobas sobre coisas bestas, e saiu feliz. Aí Milanez a levou ao motel, ‘enganada’, para ser ‘estuprada’, conforme contaria alegremente e ele alegremente confirmaria vida afora. Desconfio que quem foi enganado fui eu...", conta Pellegrini.


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