Filosofia e afins

Quando a Morte morre

08 fev 2018 às 11:26

"Morte, não sejas orgulhosa, embora alguns te chamem de poderosa e
temível, pois tal não és. Pois não morrerão, pobre Morte, aqueles a quem deve
derrubar; nem a mim ainda podes matar. Do Sono e Repouso, que em tuas
imagens existem, muito prazer se tira, muito mais de ti há de fluir; e nossos
melhores homens em breve partirão, na tua companhia, descansando os ossos,
libertando as almas! São escravos do destino, do acaso, reis e homens
desesperados; convivem com o veneno, a guerra e a doença; as drogas e
encantamentos podem nos fazer dormir tão bem, melhor que o teu próprio
golpe. Por que então temer? Um curto sono passa e despertamos na eternidade,
a Morte não mais existe: Morte, tu hás de morrer!" (1)

Costuma-se dizer que a morte é o axial motivo do aparecimento das ideias
filosóficas e religiosas mais primitivas. Está aí uma bela – e muitíssimo
interessante – asseveração (afirmação segura). A questão do exício (ou da
morte humana) assombra e fascina os povos da Terra, sem exceção, desde a
Antiguidade. Esse elo fantástico entre os mundos inferior e superior dos mortais
– e o exponencial simbolismo que evoca - rege todo o comportamento e todas
as ações dos homens, determinando os seus destinos.


Na Idade Média, a visão e a maneira de representar a morte ainda está repleta
de alegria e de inquebrantável caráter coletivo - como, por exemplo, nas
chamadas danças macabras (ou danças da morte) - o que é corrente até a
chegada do século XVI, quando o fim da vida (morte) recebe uma nova
roupagem. Os europeus ocidentais, nesses tempos, acham-se muito
familiarizados com o teatro grupal da morte. A função cênica é utilizada como
um meio eficiente de catequização e as encenações de mistérios e passagens
bíblicas ocupam espaços importantes nos banquetes e festas populares.


O filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard (1929-2007) defende a tese de
que a moderna concepção imagética da morte vem a substituir a foice e o
relógio, assim como os Cavaleiros do Apocalipse. É a era "da economia política
da salvação individual", em que a instituição do novo modelo de morte consagra
o poder do Estado e da (s) Igreja (s) – ironicamente - através do Racionalismo,
determinando o "inferno psicológico".


Ao adquirir uma feição humana, a morte adota a discriminação social dos vivos e
a transporta para os mortos e para os morituros (aqueles que vão morrer). As
pessoas devem acumular bens materiais, devem realizar ações coletivas de
obras beneficentes, devem obtusa obediência às normas vigentes e, sobretudo,
devem contribuir econômica e financeiramente para as instituições que
monopolizam a passagem do mundo terrestre ao reino do céu ou ao além.


Enquanto isso, o homem encontra-se só e há de permanecer sofrendo
individualmente, em sua interiorização psicológica. É a economia política da
salvação individual "baudrillardiana" que permanece atual e nunca jamais tão
agressiva, muito bem implantada em um incrível sistema de controle social.
Estabelece-se o agrilhoamento da morte livre – ou particular, que cada um
pudesse escolher - às normas de uma socialização repressiva dos modos de
vida; o que, aliás, não é nenhuma novidade entre as sociedades "humanais". Há
que se exercer total – e inquestionável – domínio sobre as relações mundanas
dos homens, ainda vivos, e estes com os já falecidos, transformando esse
espaço de tempo intermediário (ou seja, o interlúdio entre a vida e a morte
humana) em um lucrativo comércio de bens materiais e do espírito/alma.


No meio de todo esse inter-relacionamento universal, os mercados socioculturais,
econômicos, ideológicos e religiosos, aqueles (as) que não seguem a crença em
um Deus ou em divindades (ou forças, energias) sobrenaturais são tachados de
ateus. A recusa do ateísmo em servir, docilmente, às opiniões constituídas e
generalizadas do senso comum é sempre um incômodo, e para os seus
"praticantes" a morte é uma consequência óbvia da existência animal ou vegetal
que continua e sobrevive indefinidamente, transfigurando-se em outro tipo de
matéria. Esta morte converte-se em algo inacabável. Ao contrário, os tementes a
Deus dizem crer que da vida terrena advém um paraíso, ou um reino celeste ou
um mundo especial... é quando, inevitavelmente, a Morte morre.





1) Versos do poeta inglês John Donne (1572-1631).


2) O Racionalismo, basicamente, transporta a ideia de que os sentidos
são primários com respeito ao conhecimento. Está mais associado ao grupo de
filósofos, do século XVII, como Descartes, Spinoza, Leibniz, Malebranche.
Contudo, tais pensadores não rejeitam totalmente os sentidos, atribuindo-lhes
importância em determinados momentos da vida humana; Spinoza, por
exemplo, "sugere que os sentidos podem ser meios auxiliares para o
conhecimento autêntico, mas são imperfeitos e muito menos valiosos"
(Dicionário de Filosofia de Cambridge, 2006, p. 789).


3) Faz-se mister diferenciar Além ou Mundo do Além de Outro Mundo. O
primeiro refere-se "ao domínio misterioso para onde se encaminham todos os
homens após a morte", aí se encontram as trevas. "Do além, a não ser em
circunstâncias especiais (reencarnação, Teseu, Orfeu, Eneias, Héracles...)
ninguém sai ou volta." O outro mundo constitui-se de luz, aí habitam os deuses
de todos os povos, incluindo os greco-romanos. Pode-se afirmar que seja um
"duplo" do nosso próprio universo terrestre (BRANDÃO, 1997, p. 313).





REFERÊNCIAS


BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte. São Paulo (SP): Edições
Loyola, 1996.


A Troca Simbólica e a Morte – parte 2. Lisboa (Portugal): Edições 70, [19--].
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 11.ed. Petrópolis (RJ): Editora
Vozes Ltda, v.1, 1997.


Dicionário de Filosofia de Cambridge. Trad. João Paixão Netto; Edwino Aloysius
Royer et al., São Paulo (SP): Paulus, 2006.

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