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A GAIVOTA SOLITARIA

04 set 2014 às 11:42
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O aviãozinho fez um amplo laço no ar. Um teco-teco valente e barulhento que voava como se tivesse incorporado o mais ágil dos pássaros. Subia e descia e deixava rastros de fumaça, como trilhas inventadas no céu claríssimo daquele dia.

Nunca esqueci.

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Era uma grande festa. Todos, rigorosamente todos os que estavam ali, no Campo de Aviação, estavam elegantes e felizes. Vi minha prima, com um chapéu branco de abas curvas que amplificava seus olhos azuis. Vi como ela acompanhava os círculos e as espirais num movimento gracioso da cabeça, agitando os cabelos. As velhinhas saíram da missa da manhã, dando os passos mais rápidos que suas pernas permitiam e, olhando o céu, milagrosamente chegaram lá sem um tropeço sequer. E meus olhos de menino nem notavam a irritante poeira avermelhada que dificultava enxergar o avião, secava a garganta e esfolava o nariz. Escutei meu pai dizer a alguém: "Ela é filha de italianos." Havia um orgulho nisso. Inexplicável orgulho, na verdade. A mim não faria a menor diferença se ela fosse javanesa, norueguesa, angolana, mas eu queria vê-la! Ver a "gaivota solitária", como a chamaríamos muitos anos depois. A maravilhosa mulher que pilotava aviões com a habilidade e a coragem de um ás das alturas.

O avião, sob seu comando, fez um ultimo circulo e arremeteu para a cabeceira da pista. Uma pista rudimentar, escavada a enxadão. Era uma longa faixa de terra roxa, quase infinita aos meus olhos de criança. Um raspão largo e longo na superfície pioneira do norte do Paraná. O avião tocou a pista e levantou uma nuvem de pó. E a nave veio em nossa direção, balouçante, como uma enorme mariposa que vislumbrou a luz, e, insegura, trêmula, caminhava. Finalmente aquela estranha maquina de voar parou e, suas hélices, como que inconformadas com o silencio a que seriam submetidas, ainda ficaram alguns instantes girando. Assim que elas pararam ficou aquele silencio absoluto. Todos os olhares, todos os espíritos, voltavam-se agora para a portinha do avião, à espera dela. Da aviadora corajosa, da mulher alada que já havia cruzado todos os céus da América, desvendado do alto todos os segredos dessa terra. E tinha visto o mais forte e corajoso dos homens como uma pequena estatueta insignificante. Um ser diminuto diante do infinito azul que tinha à frente.

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O TEMPO

Ela então saiu do avião, pisando sobre a asa esquerda. Era ela. Ada Rogato! Levantou os óculos, retirou o capacete de aviação e desceu as escadas com ele seguro pelo braço direito, colado ao corpo. Deu os primeiros passos, altiva como uma guerreira de tempos muito antigos, com seu elmo ao lado e o ar de quem venceu mais uma batalha. Caminhou entre as pessoas, que permaneciam com a respiração suspensa, fascinados pela presença dela. Foi até um pequeno palco em que a esperavam, subiu e acenou. A multidão liberou de uma só vez a emoção. Um "Hurra!" uníssono brotou do peito de todos. Eis a maneira como nós saudamos a mulher alada, a filha dileta de Ícaro.

Hoje, Ada Rogato já não voa em nossos céus, o campinho de aviação já não existe e poucas pessoas se lembram daquele domingo. Hoje, eu caminho com os pés plantados no chão e raramente me encorajo a alçar voos, ainda que imaginários. Mas quando me deixo levar pelas lembranças de outros tempos, são dos olhos da Ada Rogato que me lembro. Não me permito esquecer que por um brevíssimo instante, naquela manhã, eles pousaram em mim.


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