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CRÔNICA DAS DUAS CIDADES

30 ago 2014 às 20:50
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As cidades infelizes se parecem. As felizes, são felizes cada uma à sua maneira. Elas têm ruas especiais que só a elas pertencem, tem maravilhas ocultas, tem segredos que só seus moradores conhecem, porque só a eles são revelados. Aprendi isso quando Londrina revelou-se a mim numa manhã de maio, lá pelo comecinho dos anos 70. Uma chuvinha anunciadora do inverno deixava os paralelepípedos da rua Quintino brilhando como um espelho. De uma maneira muito própria, Londrina fazia do chão seu mar a refletir o céu.

Tudo nessa cidade era força do solo fértil a fazer brotar vida nos lugares mais inesperados. Qualquer descuido e entre as juntas do calçamento nascia um capim verdinho, viçoso, meio que esganado pela pedra, sempre teimando em crescer. Os jipes e carros novos rodavam sobre suas ruas, manchando o chão, replicando trilhas das carroças pioneiras, que deixavam suas marcas fundas no barro vermelho e grudento. Lembranças de quando essa terra era só uma menina rústica. Na Londrina dos anos 70, no barro e no asfalto, as marcas se misturavam. Aqui ainda tinha um cheirinho de roça grande, apesar da Universidade, apesar da urbanização, apesar da atmosfera delicada, apesar da inquietação cultural, apesar de tudo.

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E nos dias mais frios do inverno, os cafeicultores, de cara amarrada conversavam sobre os riscos da geada. Ainda não tinha acontecido a geada de 75, catástrofe de gelo e morte que dividiu nossa vida em dois tempos. Nos sons de Londrina, não havia o tinir de ferro batendo, nem os rrr infinitos das engrenagens industriais. Havia sim, o silencio suave das tardes ensolaradas nas propriedades de café, o burburinho profundamente humano das conversas em frente às casas nas vilas, o ruído seco da peroba rosa dos assoalhos.

Mas as cidades tem uma alma formada por milhares de vontades. Elas decidem o que fazer da sua própria vida. As cidades crescem, mudam, encorpam. Muitos a deixam, muitos a querem. E a paisagem urbana, o mapa afetivo das ruas modifica-se constantemente. Não há mais aquele bar na esquina, nem o armarinho na quadra de trás. Onde estará aquele senhor com seu inseparável guarda-chuva, que passava pela minha rua pontualmente às seis da tarde? Voltará? E aquela família engraçada que falava alto e morava na casa de madeira logo ali? E a casa? E a rua?
Hoje, gosto de percorrer as ruas da cidade pisando no asfalto que substituiu os paralelepípedos. De repente me dou conta que olho somente para o chão. Percebo que ando à procura de umas ramas de capim brotando entre pedras, como sempre via naqueles longínquos anos 70. Procuro as extensas listras desenhadas pelo barro vermelho. Tento ouvir os estalos do chicote dos carroceiros. Não consigo. Londrina é outra cidade, moderna, ajardinada. E enfrenta suas dores, porque viver dói e a gente sabe disso. Essa de hoje repousa sobre a de ontem, felizes as duas.

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Em meus passeios o que tento ver e tocar é uma cidade que já não existe. Ela e seus personagens migraram para o extenso território da história e do mito. Claro que a Londrina de ontem é tão imortal como a agua e o ar. Ela vive nos meus melhores sonhos.


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