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Joy Division, de Grant Gee

31 dez 1969 às 21:33
Ian Curtis, líder do Joy Division - Arquivo
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"A arte não reproduz o visível, mas torna-o visível. A essência do desenho seduz-nos facilmente, e com razão, para o abstrato. O aspecto esquemático e fantástico da imaginação é um dado adquirido que, ao mesmo tempo, se expressa com grande exatidão. Quanto mais puro é o desenho, isto é, quanto maior é a importância atribuída à forma que está na base da representação gráfica, tanto mais deficiente é o suporte para a representação realista dos objetos visíveis (Paul Klee, em Confissão de um Criador, 1920)

Pouco se sabe sobre Grant Gee: vive em Brighton, Inglaterra; dirigiu clipes para o Radiohead ("No Surprises"), para o Blur ("Tender"); realizou o curta "Tel Aviv City Simphony" (2003), além de ter concebido um dos documentários mais radicais sobre uma banda de rock: "Meeting People is Easy" (1998) – sobre o grupo liderado por Thom Yorke.
Bem, é isso o que nos diz o IMDB.
Essas informações, no entanto, já são mais que suficientes, pois no universo Grant Gee uma atividade está constantemente em extinção: (o ato de informar).
***
Um filme não tem o dever de passar informações. (Já temos o jornalismo e os livros de não-ficção para isso)
Só as formas educam. (assegurava Bresson)
Um bom filme documentário tende à ficção. (Godard)

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Essas três frases, aliadas à citação de Klee, podem nos ajudar no trato com o novo material apresentado por Grant Gee: o filme "Joy Division". Digo "material" pois Gee nos estimula a repensar o termo "filme" como matéria-prima acabada, definitiva, uma versão emoldurada que nunca mais será modificada. Seus filmes (especialmente "Meeting People is Easy") parecem viver em constante ebulição, prontos para explodir diante dos espectadores (sem nenhum remorso por tal ato, digamos, providencial).

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Em "Meeting People is Easy", ele acompanhou o grupo britânico Radiohead ao longo da turnê do álbum "Ok Computer" (1997). Shows nos EUA, Espanha, Japão. O registro, no entanto, não foi meramente informativo: há dezenas de entrevistas com o grupo, cenas de bastidores, letreiros com reportagens da época. No entanto, o que Grant Gee faz é partir desse núcleo informativo a respeito do Radiohead para nos oferecer uma nova possibilidade de percepção: ele traz cores, sons, imagens captadas em suportes variados (e/ou tratadas na pós-produção com diferentes tons), informações flutuantes e simultâneas a respeito do grupo. Cria uma simultaneidade de informações e sensações dignas de uma canção do Radiohead, provocando no espectador a ilusão de estar diante da essência pura da música criada por este grupo. Todos os elementos musicais do Radiohead (a mistura de gêneros, o tom melancólico, a criação de ambiências) permeiam a linguagem do documentário. Mais do que nos "informar" o que foi essa turnê do "Ok Computer", ou quem são (aspectos biográficos) os integrantes do Radiohead, Gee nos passa um estado de espírito, um sentimento abstrato que está tanto nas entrevistas fragmentadas como nos momentos de silêncio em que apenas observamos a banda. Pode-se acusar o filme de ser uma obra excessivamente barroca, um tanto fragmentária em demasia – enfim, um quebra-cabeças que nunca poderá ser montado. Todavia, a rígida condução de todos os elementos do filme não deixa margem para tal crítica: Grant Gee domina completamente essa linguagem, ao ponto de evitar o óbvio caminho do videoclipe e ao mesmo tempo nos emocionar com uma série de experimentos visualmente impecáveis. Nessa perspectiva, tudo é válido para Gee: desde as imagens monumentais de um show abarrotado, até a granulação excessiva em uma pausa para uma entrevista. Imagens não-referenciais, um certo charme do filme, entram (com freqüência) para introduzir um ar ficcional, nos conduzindo a uma direção mais perigosa ainda, na qual o desafio não é só sentir a música proposta pelo Radiohead, e sim, se relacionar com tal objeto seguindo os mesmos procedimentos utilizados pelo grupo: intensidade, simultaneidade, fragmentação.

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Em "Joy Division", porém, a proposta é menos radical (ao menos na exigência em relação ao espectador). Muda-se o tema, muda-se a abordagem. Ao falar da banda de Manchester, ao se aproximar da figura mítica de Ian Curtis, Grant Gee nos oferece um núcleo informativo como fio condutor da narrativa, o que permite que espectadores não familiarizados com o tema possam se emocionar com a trajetória da banda e do seu vocalista. Algumas escolhas permanecem: há imagens simultâneas; aproximação de contextos de épocas distintas (registros que na proposta de Gee surgem como naturalmente complementares); depoimentos entrecruzados (com direito a pausas explícitas, como em "All About Eve", de Joseph L. Mankiewicz); e o mais importante: ao descrever Manchester, ao incluir passagens intimistas da vida de Curtis, Gee nos direciona para o sentimento proposto pela sonoridade da banda Joy Division. Eis aqui um ponto chave desse filme, e, possivelmente, o elemento que o torna mais bem acabado do que o filme "Control", sobre o mesmo Joy Division.


Gee consegue, ao longo de todo o documentário, esculpir uma espécie de sentimento invisível, um "estado de ser" que teria motivado a criação do Joy Division em determinada época e em determinado lugar. Trata-se de uma radiografia de algo impalpável; a descrição do que não pode ser facilmente resumido, muito menos compreendido. Por meio das referências a Manchester, depoimentos dos ex-integrantes do JD, imagens e sons que nos inserem em uma atmosfera sombria, fotos da banda em preto-e-branco... Em tudo isso, há um sentido de inadequação onipresente, uma constante ausência, uma certeza de que algo está fora do lugar. Essa "quase-impotência", um grito que quis nascer silencioso (ao menos é essa a impressão), percorre o filme do começo ao fim, chegando ao ápice quando temos acesso ao universo criativo de Ian Curtis: imagens de arquivo que mostram seu desempenho no palco, testemunhos de pessoas próximas que confirmam sua tendência para um romantismo idealizado, fotos que transcendem a tradicional figuração do universo pop. Grant Gee se aproxima de um universo indigesto, uma certa melancolia que não deveria ser revisitada com tanta freqüência.

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No filme "Control", de Anton Corbjin, tem-se a sensação do que foi o Joy Division, e como a vida de Ian Curtis permaneceu em crise, do surgimento do grupo ao fatídico 18 de maio de 1980 (data em que ele cometeu o suicídio). O ator Sam Riley trabalha em uma linha similar a de Michael Pitt na transcriação que Gus Van Sant compôs para o universo de Kurt Cobain em "Last Days". A abordagem de Corbjin, contudo, não é tão sólida quanto a linguagem de Gee em "Joy Division". Há momentos em que acreditamos que "Control" realmente se aproxima de Ian Curtis com uma força extrema, epidérmica. Corbjin opta pela transparência: vemos os ataques de epilepsia, o caminhar por uma Manchester cinzenta, uma vida sem muitas possibilidades. Mesmo a figura da amante de Curtis e o crescente sucesso da banda não excluem a sensação de uma impossibilidade profundamente amarga. Trata-se de um filme difícil de ser visto, e difícil de ser comentado. "Joy Division", por sua vez, opera em uma angústia crescente, quase imperceptível. A confluência de entrevistas, imagens da época, cores, sons, fragmentos que adquirem nova organicidade quando postos lado a lado – tudo isso nos (e)leva para uma dimensão extremamente interior do personagem, da banda, de Manchester. Estamos diante de dores ainda não cicatrizadas, de uma ausência tão marcante que Ian Curtis parece ser o principal entrevistado do filme (e isso sem dar entrevista alguma a Grant Gee).


Tal problemática, a que inclui um filme de ficção e uma peça documental sobre o mesmo tema e produzidos em um período não muito longo, nos remete à dicotomia entre "I’m Not There", de Todd Haynes; e "No Direction Home", de Martin Scorsese. Após assistir ao documentário de Scorsese, fica difícil aceitar algumas propostas de recriação de Haynes, mesmo em um projeto audacioso e tão bem resolvido como "I’m Not There". As imagens de arquivo de Dylan, implacáveis e ao mesmo tempo passíveis de inúmeras releituras, transcendem toda e qualquer recriação de Haynes, por mais talentoso que ele possa ser. No caso JD, ocorre o mesmo: uma entrevista rara com Ian Curtis, trechos de uma conversa sob estado hipnótico, imagens raras de apresentações nos anos 70 – há um elemento incômodo nestas imagens que nos denunciam sua condição original. O aspecto de registro, documento, nesse caso, é potencializado por uma sensação de invasão: como se estivéssemos a invadir camadas cada vez mais profundas de um universo sem cores, sem atrativos, sem nenhuma facilidade. O que Grant Gee nos oferece é algo extremamente impiedoso: não se pode fugir da sensação de perda, impotência, anulação diante dessas imagens.


Em todo o filme, há uma série de efeitos que anulam tanto a relação espectador-filme como a relação crítico-obra. Por um instante, tem-se a evidência de que Curtis está ali, sentado, de costas, imóvel. Quase desfigurado.

O visível, nesse caso, surge com tal força que há a estranha percepção de que algo se materializou em "Joy Division". (O "fracasso" de Curtis se torna o nosso "fracasso" – o fracasso da Humanidade)
Um filme, portanto, não somente sobre música, e sim (sutilmente), sobre a disposição para o fim.


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