"Não consigo imaginar um meio familiar mais propício para a minha vocação que aquela casa lunática, em especial pelo caráter das mulheres que me criaram". Como o próprio Gabriel García Márquez revela, ter passado a infância na casa ocupada pelos avós maternos e pelas tias solteiras é uma das melhores explicações para seu estrondoso sucesso.
Do avô, coronel veterano, ouvia intermináveis histórias de batalhas e guerras perdidas. Da avó, histórias sem pé nem cabeça que desde sempre inspiraram o realismo fantástico de seus livros. As loucuras das tias solteiras completavam o ambiente surreal da casa que ficava no centro da cidadezinha colombiana de Aracataca - que, um pouco mais insana, transformou-se na casa de Macondo, a aldeia fictícia de sua obra-prima Cem anos de solidão.
Outros tantos motivos para o êxito do escritor, prêmio Nobel de literatura de 1982, estão mergulhados em um oceano inteiro de recordações. Tanto que o recém-lançado Viver para contar traz à tona apenas algumas delas. O livro de 474 páginas é o primeiro dos três volumes que ele pretende publicar com as memórias de toda uma vida dedicada a escrever.
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O título é bem sugestivo. Depois de ter extraído um câncer no pulmão e de vencer, em seguida, um câncer linfático, García Márquez percebeu que havia chegado a hora de contar seus segredos, e passou a viver para conseguir escrevê-los. Ou a escrevê-los para continuar vivendo, como reza a máxima que ele tomou emprestada de outro escritor já aos 20 anos - "se puder viver sem escrever, não escreva".
Aos 75 anos, o colombiano prova que tamanha paixão deu resultado. E mostra em sua autobiografia a mesma força literária que lhe rendeu o reconhecimento da crítica e do público, fama e dinheiro.
O reconhecimento da crítica até que veio cedo, com os primeiros contos publicados em jornais colombianos. O dinheiro foi o último a chegar, o que fez García Márquez passar por maus bocados até o lançamento do primeiro livro, O Enterro do Diabo, em 1955, que marca o fim de Viver para contar.
Tudo o que ocorreu até ali é narrado com seu jeito simples, mas misteriosamente envolvente: a iniciação sexual, as constantes mudanças da família, o ingresso na profissão de jornalista, o abandono do curso de Direito e as conseqüências de três maços diários de um "tabaco feroz".
O escritor não deixa de contar como ocorreu seu amadurecimento literário, alimentado por tudo o que lhe caísse em mãos, mas com atenção especial pelas obras do norte-americano William Faulkner.
Ler Viver para contar é, portanto, conhecer os caminhos que levaram García Márquez a escrever livros como O amor nos tempos do cólera, A má hora e Crônica de uma morte anunciada. É praticamente um manual de interpretação para toda a sua obra, com a vantagem de ter sido escrito por ele mesmo, com o belíssimo texto de sempre.
O final do livro não é, nem de longe, tão arrebatador e definitivo como o de Cem anos de solidão. Até porque deixa no ar um mistério que só se resolverá no segundo livro da série - que, dizem, já está a caminho.
Enquanto ele não fica pronto, "Gabo" comemora mais um de seus sucessos. Viver para contar já vendeu, em todo o mundo, cerca de 1,5 mihão de exemplares. No Brasil, teve a expressiva tiragem inicial de 50 mil exemplares, e as vendas lhe garantem, há quase dois meses, o primeiro lugar nas listas de não-ficção.
Que Gabriel García Márquez continue vivendo. E contando.
Serviço:
Viver para contar, de Gabriel García Márquez
474 páginas
Editora Record
R$ 55,00