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'Homens invisíveis': retrato de quem recolhe nosso lixo

Fernando Jasper
10 mai 2005 às 17:28

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A cena se repetiu várias vezes. Na área de serviço do apartamento, com as mãos sobre a máquina de lavar e o olhar perdido lá adiante, uma mãe cada vez mais apreensiva volta a fazer a velha pergunta ao rapaz que está a seu lado. "O que você quer com isso, meu filho? Você vai se magoar, vai acabar se machucando. Uma andorinha só não faz verão".

O que intrigava dona Lêda era que o filho, o estudante Fernando Braga da Costa, estava mesmo disposto a levar adiante o que, de início, era apenas mais um trabalho do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A tarefa dos 70 alunos da disciplina Psicologia Social II era exercer, por um dia, e ao lado dos trabalhadores reais, uma profissão definida como "subalterna e não-qualificada". Cada um escolheria a que bem entendesse.

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Fernando, assim como os demais estudantes, cumpriu a tarefa. Mas não limitou a experiência àquele único dia. Por vontade própria, passou a exercer a profissão escolhida – e a viver na pele as conseqüências dela – uma vez por semana. Aliás, é o que faz até hoje, aos 29 anos, nove anos depois da primeira vez. A atividade foi, inclusive, objeto de seu mestrado já concluído e é alvo de seu doutorado em andamento.

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Somente os relatos dos profissionais "subalternos e não-qualificados", anotados no diário de campo do mestrado ao longo de oito anos, renderam mais de 500 páginas. Antes mesmo da conclusão, a pesquisa ficou famosa, no meio acadêmico e fora dele. Fernando, que não tinha nem sequer a pretensão de escrever um artigo, passou a receber telefonemas de várias partes do país. "Onde é que eu compro o livro?", ouviu, certa vez, de uma sergipana interessada em conhecer melhor a pesquisa.

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A possibilidade de intervir, ainda que de forma miúda, para melhorar a realidade, motivou Fernando a escrever Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. A obra conta a história do relacionamento dele com pessoas que exercem não apenas uma profissão "subalterna e não-qualificada", mas uma profissão desumana e mal-paga, que condena seres humanos a trabalhos degradantes, a tarefas que ferem não só o corpo, mas também – e principalmente – a alma.


"O corpo é surrado, sugado, machucado, infestado: a única empresa do trabalhador vai falindo. Sua saúde entra em colapso, com complicações de todas as naturezas e magnitudes. (...) Um dia, a saúde falece, definitiva e precocemente. E a alma – humilhada, comprimida, aviltada, destroçada – permanece". Este e outros trechos igualmente contundentes nos mostram como é cruel o dia-a-dia e o destino de quem entra em contato com o mundo através do contato direto com o lixo e o material desprezado pelo mundo, por todos nós. Como é ingrato ser gari. Varredor de rua. Lixeiro. Subalterno. Não-qualificado.

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Ocupante do cargo mais raso, denominado "ajudante de serviços gerais", gari não é consultado sobre qual trabalho deve ser feito antes. Não escolhe suas ferramentas e delas não pode reclamar, mesmo que sejam inadequadas, perigosas, desgastadas – enfim, mesmo que nem ao menos pareçam projetadas para o corpo humano. O trabalho – sujo, insalubre, braçal, repetitivo, humilhante – é exercido sob hierarquia severa e autoritária. Pior: por tudo isso, quem é gari deixa de ser visto como pessoa e passa a ser visto – quando visto – apenas como função. Geralmente, como provam diversos episódios do livro, gari passa despercebido. Não é notado ou cumprimentado. Vira homem invisível.


A leitura do livro provoca questionamentos que se repetem a cada página. Quantas vezes não notei um varredor na rua? Quantas vezes não lhe dei um simples bom dia? Quantas vezes passei por ele como se estivesse passando ao lado de um item paisagístico? "Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social: todos parecem valer a mesma coisa", constata Fernando em seu livro.

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Arrogância e humildade
Diferentes capítulos mostram a forma arrogante como alunos, professores e funcionários da USP costumam (quando os notam) tratar os garis que trabalham para a prefeitura da universidade – foram esses, os garis da USP, os trabalhadores escolhidos por Fernando ainda durante sua graduação. "Tem gente que passa aqui, é como se a gente não existisse", conta um de seus companheiros.


Vestindo o uniforme de gari, Fernando quase nunca foi reconhecido ao cruzar com professores ou colegas estudantes do Instituto de Psicologia. Depois de um tempo, acostumou-se. Mas, no começo, a sensação era desconcertante, como revela no livro: "As pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. (...) Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível".

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Como os professores da USP – os nomes não são citados –, principalmente os de Psicologia, reagiram à publicação dessas histórias e mesmo ao sucesso do livro? "Não faço a menor idéia", responde Fernando, por telefone, ao chegar em casa após a rotineira viagem de 40 minutos de carro entre São Paulo – onde é professor de faculdade particular – e Jundiaí – onde mantém consultório e mora com a esposa e a filha de pouco menos de um ano.


"Ouço falar das reações, mas nada muito consistente. Mas universidade é uma fogueira de vaidades, ainda mais a USP. Então imagine o que pensam professores que têm 20, 30 anos de faculdade quando ficam sabendo que um trabalho de um ‘estudante de merda’ teve tanta repercussão..."

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No dia seguinte, da casa de seus pais no bairro paulistano da Vila Madalena (onde, para economizar, dorme algumas vezes durante a semana), Fernando conta que, à tarde, havia recebido um repórter da Folha de S.Paulo. E que já foi convidado a falar para Fantástico, Jornal Nacional, Jornal da Band, programa do Clodovil. Mas, da televisão, só aceitou participar do Programa do Jô.


Mesmo por telefone, é fácil notar a serenidade e a humildade de Fernando, homem simpático e solícito, frente à fama repentina. "Poderia me deslumbrar, mas o trabalho com os garis me educou, me preparou para evitar isso". Por sinal, nem os varredores se deixaram deslumbrar, apesar das várias matérias de revistas e jornais em que aparecem. Sobre o livro, um deles se limitou a dizer a Fernando que "o nosso trabalho é isso mesmo que tá escrito" e, em seguida, voltou ao serviço.

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Isso não significa, no entanto, que eles tenham ficado indiferentes. Ao ver uma reportagem da revista Caros Amigos, em que aparece em uma foto ao lado do hoje psicólogo Fernando Braga da Costa, Josias, um dos garis, não conteve a emoção e começou a chorar. "Naquele momento, senti que eles se deram conta de que, de alguma forma, estava acontecendo o que me pediram quando eu ainda era estudante: que eu ‘botasse a boca no mundo’ por eles, que são tão impedidos que nem voz têm em nossa sociedade", diz o autor.


Indignação e poesia
Embora intercaladas por alguns trechos mais técnicos, que dão sustentação teórica ao trabalho, as histórias são contadas com um misto de emoção e indignação pulsante, e em alguns momentos o texto preciso de Fernando Braga da Costa chega a ser poético.


"Escrevi muita poesia quando era adolescente e, no início da faculdade, escrevia uma ou duas por dia. Mas sentia que, frente ao conhecimento acadêmico, minhas paixões pareciam coisas idiotas", lembra. Nessa época, diz, o apoio de sua terapeuta foi fundamental: "Quem sabe você não consegue juntar o rigor científico com a poesia?", era a aposta dela. Foi algo bem próximo disso o que Fernando fez em seu livro, lançado pela Editora Globo no final de 2004.


Apesar de alguns jornalistas terem escrito que a obra tem como propósito clamar por "melhores condições de trabalho" aos garis, Fernando fez questão de repetir, na entrevista, o que defende várias vezes em Homens invisíveis: o fim de profissões como gari e tantas outras.


Seu orientador, José Moura Gonçalves Filho, o Zeca, pensa da mesma forma. "Se nossos sentidos e corpos fossem feridos como o são entre os garis, compreenderíamos mais facilmente a necessidade de socialmente cancelarmos trabalhos degradantes, para a alma e para o corpo humanos". Zeca, que assina o prefácio de Homens invisíveis, afirma no livro que trabalhos como esse "não devem ser reservados a uma classe de homens rebaixados e degradados, mas precisariam ser socialmente generalizados, um dever de todos e cada um".


O convívio de uma década com os varredores transformou a vida de Fernando. "Parece que este mundo não me serve mais. Se vou a um restaurante, a sensação é desagradável quando sou atendido pelo garçom. Ele parece ser o antigo escravo a serviço da casa grande, ele me serve mas não pode compartilhar a refeição comigo."


O que o psicólogo não esperava era que sua obra pudesse também causar transformações no comportamento de seus leitores. Meses atrás, ouviu, de um jornalista gaúcho que o havia entrevistado dias antes, o seguinte relato: "A gente estava entrando na sala de aula da pós-graduação e, ao passar pela faxineira, nenhum dos meus colegas deu bom dia a ela. Mas, quando eu a cumprimentei, ela ficou visivelmente muito feliz, conversou comigo..."


Fernando diz que, emocionado, respondeu ao jornalista com um nó na garganta. "Não sei se era isso o que eu queria com meu livro. Dez anos atrás, eu não queria nada, não tinha nenhuma pretensão. Mas se o livro serviu ao menos para isso, para mudanças de atitude como essa, eu já fico muito feliz".



Serviço
Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social


Fernando Braga da Costa

Editora Globo
2004
254 páginas
R$ 32,00


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