Foi numa sexta-feira, já por volta das cinco da tarde, que José Antônio, 46 anos de idade, 20 de casado com a Betinha, viu o chefe, Peixoto, chegar ao escritório com a linda neta, a Tayane, menina levada, no alto de seus sete anos.
A neta do chefe tinha os lábios borrados com um estridente batom vermelho que a menina pegara escondida da penteadeira da mãe. Como o avô lhe dissera para cumprimentar os funcionários, ela tascou um beijo no Zé Antônio. Devido à natural baixa estatura da garotinha e a dificuldade do Zé de se abaixar por causa de uma dor no ciático, o beijo não pegou no rosto, mas na gola da camisa branca, que ficou manchada de batom.
Peixoto avisou que estava saindo de viagem com a neta, distribuiu seu trabalho entre os funcionários. Uma pilha de contratos para minuciosa revisão. Isso obrigou a todos a estender o expediente por mais uma hora para que o chefe fosse tranquilo rumo ao descanso merecido.
Em vez das cinco e meia, o Zé partiu para casa às seis e meia. Pegou trânsito. No meio do caminho, o pneu traseiro esquerdo furou. Encostou. Passou a mão no celular para explicar o motivo do atraso à mulher. Àquela hora, a Betinha já devia estar encabulada com a demora dele. O aparelho estava sem bateria, ele ainda tentou fazê-lo funcionar, na esperança de um restinho de energia suficiente para uma ligação. Não deu.
Abriu o porta-malas, encontrou o estepe murcho, sem condições de uso. Quase uma hora de caminhada, juntando a ida e a volta, até o posto mais próximo, empurrando o pneu reserva, que foi vazio e voltou cheio.
Zé Antônio, salvo raríssimas exceções, sempre chegou ao lar faltando cinco minutos para as seis da tarde. Naquela sexta-feira, quando se deu conta já era quase nove da noite e ele ainda estava na rua.
Betinha sempre foi uma fera. Controlava com rigor os horários do marido. Era capaz de um escândalo se ele saísse da linha.
Quando encostou o carro na garagem, José Antônio se deu conta da quantidade de coincidências: batom na camisa, grande atraso, celular desligado. A Betinha jamais acreditaria naquela história, que começou com uma criança de sete anos!
Ao abrir a porta, encontrou a mulher de braços cruzados, cara fechada, em pé, batendo no chão a ponta do pé esquerdo.
- Por onde você andou, seu José?
- Fui a um boteco com os amigos. Um destes que é frequentado por mulheres de índoles duvidosas. Eu precisava espairecer.
Ela olhou fixamente para a marca de batom, engoliu o choro.
- Pelo menos você foi sincero. O jantar está no fogão. Boa-noite.