LÚCIA MOURA
Era uma vez Lúcia Moura.
Era uma vez no Colégio de Notre Dame de Sion, no curso primário. O banheiro não se chamava banheiro. Nem toalete. Nem reservado. O banheiro devia ser chamado em francês, circulation. Tinha uma chave grande com uma medalha pesada, que ficava dependurada em um prego. O ritual desenvolvia-se assim: uma menina levantava-se, só uma de cada vez, nunca mais de uma. Jamais duas meninas juntas no banheiro, aliás circulation, não podia, no Colégio Sion ou em outros colégios de freiras. A menina em precisão se levantava, alcançava na ponta dos pés a chave dependurada no alto, atravessava a classe, abria o circulation que ficava no fundo, dava um tempo, voltava, recolocava a chave no prego.
Lúcia Moura – a blusa engomada, os pulsos juntos sobre a carteira, a pose de cachorrinho em atenção permanente. Sentada como se devia sentar à mesa, as madres ensinavam os três mots da educação, toujours (sempre as mãos apoiadas no tampo), parfois (às vezes o antebraço), jamais (nunca o cotovelo). Os cabelos louros em duas tranças grossas e bem feitas. A cara branca. Muito branca. A menina lavada. A menina de branco lavada. A menina que as mães das outras meninas apontavam: "Veja aquela menina, o seu uniforme, que engomado, que limpeza". Menina-modelo.
Lúcia Moura tirava boas notas. Seus cadernos todos encapados de azul. E quando ela se levantava para ir ao banheiro, pardon, circulation, sua presença passava de leve entre as outras, passos delicados que nem roçavam o assoalho, parecia. O próprio fato dela ir ao circulation tornando-se transparente. Porque todo cheio de graça e doçura.
Às vezes notava-se apenas quando ela não estava lá. Não se percebia como passara entre as carteiras, não se fazendo notar – branca, graciosa, loura, impecável. O circulation começou a ficar ocupado demais. Quem? Lúcia. Lúcia Moura. Voltava, mais branca, mais limpa, mais etérea, entre as carteiras circulava, circulando mais e mais, Lúcia Moura, circulação. As outras já em risinhos. Que a ela não chegavam, parecia. Tudo o que nela batia, voltava. Refrangia. De tão branca e limpa, Lúcia, Lúcia Moura, refrangia a luz, a brancura, a beleza, a pureza. As meninas estranhavam, o que faria tanto no banheiro, pardon, circulation? Os risinhos e comentários não a atingiam. Passava ao largo. Uma rainha. Às vezes levava um livro, um caderno, demorava. As mãos muito lavadas. O cheiro do sabonete. Lúcia Moura circulava.
Um dia Lúcia Moura levantou-se, pegou os cadernos, os livros todos, como quem ia embora. Foi até o cabide onde ficava a chave grande com medalha. Tirou-a do prego. Tomou a ala central da classe, passou (os cabelos louros, as tranças, a tranqüilidade), caminhou até o fundo, empurrou com lentidão a porta do circulation perante a classe atenta, desperta. Madre Marie-Jésus ficou parada, com o apontador na mão. Um silêncio. Lúcia, Lúcia Moura encostou a porta sem trancar. Pelo vão viam-se pedaços de gestos, a água correndo, seu barulhinho. A madre caminhou também pela ala central, as meninas se levantando nas carteiras, a freira escancarou subitamente a porta: Lúcia Moura parada, muito branca diante da pia, lavava cuidadosamente com água e sabão todos os livros, todos os cadernos cuidadosamente encapados de azul.
No dia seguinte Lúcia Moura não veio à aula. Nem nunca mais.
__________________
( Do livro de contos Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão – DBA Books & Arts –SP-2004)
______
A escritora e jornalista paulista, Cecília Prada, estreou na década de 1950 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e do Rio, e em 1980 ganhou individualmente e em âmbito nacional o Prêmio ESSO de Reportagem pela Folha de São Paulo. Tem também 4 prêmios literários e tem 5 livros de contos publicados, sendo os principais O Caos na Sala de Jantar, Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão e Faróis Estrábicos na Noite, e mais 6 livros de jornalismo.
Seus contos e artigos figuram também em revistas do exterior e em antologias, nacionais e estrangeiras. Atualmente reside em Campinas (SP) e termina um romance autobiográfico. Foi também diplomata de carreira (turma de 1957 do Instituto Rio-Branco, MRE).