Se o leitor, além do prazer de ler livros de negócios gosta de ler poesia, talvez nas férias deitado na praia, ou de presentear livros de poemas, o Brasil conta com magníficos poetas que estão produzindo obras de alta qualidade, entre eles, Ferreira Gullar, Romano de Sant'Anna, Neide Archanjo, Ledo Ivo, Luci Collin, Claudio Daniel e tantos outros. Se eu colocar todos os nomes a coluna vai parecer uma lista telefônica.
Lembremos que presentear um livro no Natal é uma boa opção. Livro é eterno. E, em vez de o livro morrer depois de lido, como uma flor ou terminar sendo uma lembrança na boca como um vinho, perdura, torna-se cada vez mais interessante. Faz-me lembrar das barbearias de Buenos Aires, pois é comum que os barbeiros mais idosos escutem e obriguem os fregueses a escutar tangos. E quando a voz do imortal Carlos Gardel preenche o local, alguns barbeiros falam com convicção: "Ese "tipo" canta cada vez mejor" (Esse cara canta cada vez melhor).
Algo semelhante acontece com a voz de um poeta, lemos o poema várias vezes e temos a sensação de que ele escreve cada vez melhor. Isso acontece com os trabalhos de grandes livros de poemas como é o caso de Fera Bifronte (Editora Lumme, 2009, 92 páginas).
Em primeiro lugar, temos que reconhecer que Claudio Daniel (o autor da fera) é "fera" no assunto, já publicou 18 livros de poesia, ficção, antologias e traduções. Ele é jornalista e mestrando em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo.
Li faz algum tempo que um poeta tem duas opções: é poeta para agradar ao próprio ego, a namorada, a crítica, etc., ou é poeta de "corpo e alma", respira poesia. Entendemos que um poeta de corpo e alma é um ser confuso, ele confunde poesia com oxigênio, por isso, se faltar poesia, ele morre. Esse é o caso de Claudio Daniel.
O título do livro Fera bifronte faz lembrar o mito do deus romano Janus que tinha duas caras, uma para a frente e outra para trás - enquanto uma cabeça falava uma coisa a outra cabeça questionava, pois olhava para outro lado e tinha outra visão. Janus era encarregado de abrir as portas para o ano que se iniciava. O livro de Claudio Daniel talvez tenha o objetivo de abrir as portas da percepção estética, de oferecer-nos uma outra visão.
O livro Fera Bifronte reúne poemas (viscerais) escritos por Claudio Daniel entre 2004 e 2008. Faz parte do livro a série de poemas intitulada 'Prismas' (cinco poemas), em que utiliza a permuta de palavras como princípio estrutural. Vejamos o início do poema Prisma I: toda palavra / é um labirinto / (recrocita / corvo lunar), / (sub-reptício réptil / foge / entre folhas). / cristal negro, / búfalo negro,/ palavra enegrecida / em sons guturais, / espectros / de si mesmos.
Belíssimo também o poema Muro, do mesmo livro:
I. Uma voz cega, trevos roxos e essa aspereza ceifando,
ceifando.
Figuras retorcidas, no muro,
sombras de árvores-
anãs.
Folha
amarela
de um álbum vegetal
dali a fera salta,
está saltando;
dali a fera canta,
está cantando.
Longe da palavra fácil, a poesia de Claudio Daniel se caracteriza pela arquitetura inusual, em que podemos destacar originalidade, metáforas de forte impacto, um constante reinventar de formas, de criar versos com a fluidez de um rio. Uma busca constante de expressar sua alma de milhares formas, um jogo em que a própria vida parece querer desvendar-se.
Claudio Daniel não é escritor de poemas, ele é sua própria poesia. Reinventa-se nos jogos que cria, sua mente é um talher de alfabetos, de novas formas, uma luta constante por reinventar-se ou reencontrar-se. Esse querer "ser mais ser", como dizia Platão.