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Neguinha (conto de Isabel Furini)

14 fev 2011 às 09:23

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Sentou-se no lado direito do túmulo. O dia estava ensolarado. Não era dia para ir ao cemitério, pensou. Sol é bom para passeio, para praia, mas ela estava ali, sentada sobre o túmulo, colocando flores recém-compradas em um vaso grande, de porcelana pintada de azul e sem água. As flores não iam durar muito. Mas que importa?

Observou detidamente a fotografia de um homem de queixo quadrado e olhos azuis em um porta-retrato pequeno, de metal outrora dourado, agora escuro. Quebrou-se uma das pontas do porta-retrato, podia trazer outro, mas não... mortos não reclamam de nada, pensou. Meu pai, meu pai, murmurou com o olhar fixo na fotografia.

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Lembra, pai? Lembra quando você me chamava de neguinha feia? Lembra disso? Pois eu não esqueci. Você dizia com sua voz altissonante, parecida com a voz do homem que vendia sonhos de nata e passava pelo bairro pobre, de chão batido, gritando sob o sol do meio-dia: Sonhos, sonhos baratos.

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Neguinha feia! Menina, você está cada dia mais negra, mais magra e mais feia, repetia aos gritos, cuspindo saliva pelos cantos da boca. E que vergonha você sentia da Neguinha feia, não é verdade, pai? Tinha vergonha sim. Tinha vergonha de apresentar sua filha negra a seus parentes de olhos azuis e cabelos mais ou menos loiros. Mamãe colocava um vestidinho branco e minhas primas loiras riam de mim, dizendo: Parece mais negra ainda. Parece noite escura. Pomada para sapatos. Parece jabuticaba. E você escutava e ria. Ria de mim.

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Que pai honesto ri da própria filha? E depois, como bom homem, ainda enchia a boca de saliva ao dizer: Não sou racista, casei com uma negra. Casou sim, foi porque eu ia nascer e o avô pediu ajuda ao Xangô. Foi porque você estava com febre alta e não sabia nem o que dizia. Foi porque o tio te arrastou até a igreja e ordenou ao padre que fizesse a cerimônia!...


Forte o tio Chico. Todo mundo o respeitava. Todos fugiam quando seus olhos se incendiavam de raiva. Até você teve medo dele, pai. Até você!... E hoje você não tem mais medo de nada. Está ai, na terra desse cemitério, em um túmulo sem flores. E eu vim para te visitar, pai. Trouxe algumas flores só para demonstrar que sou boa filha.

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Alguém chorava. Virou a cabeça. Era uma mulher idosa e franzina vestida de preto. Pensou que não era a única pessoa que sofria. Voltou a olhar a fotografia.


Eu não vim pelas flores, não! Estou aqui para dizer que não precisa mais ter vergonha de mim, por ser negra. Pois agora eu sou uma das vozes do Brasil, pai. Você morreu sem saber isso. Que pena! Mas eu vou te contar, eu herdei a voz da avó Eugênia, a primeira mulher do avô. Aquela que fugiu com o mestre-sala de escola de samba. Eu sou uma cantora negra, pai.
Todos gostam de mim. Enquanto minhas primas brancas trabalham de segunda a sábado, vendendo roupas chiques, eu sou famosa, pai. Eu vou comprar os vestidos que elas vendem e que não podem comprar. E elas me olham com inveja. Elas têm inveja da neguinha feia, da neguinha de cor de piche. Sabe por que, pai? Porque eu sou uma guerreira. Eu triunfei, pai. Eu sou negra e vencedora e tenho tanto orgulho disso!... E isso aí, pai. Eu sou negra e tenho orgulho de ser negra.

(Conto de Isabel Furini de livro inédito).


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