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Nublado - Conto de Jandira Zanchi

19 abr 2020 às 06:07
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NUBLADO

Noite severa começando sem uma réstia de lua. Celso acordado, os cigarros empilhados no cinzeiro, o copo vazio. No apartamento. Mentia, claro, como tantos, que as compras eram feitas online, que só saia para ir até a padaria, três quadras dali. Mentia, afinal, sempre mentira. Movido a álcool e combustão interna, verdades, confusões ou irrealidades lhe eram completamente indiferentes. Inclusive dificilmente terminava seus diálogos com os tantos que conhecia ou cruzava aqui e por ali. Era irrequieto, sempre fizera mil atividades ao mesmo tempo, três celulares, algumas vezes, esquecia, perdia, sumia com algum deles sem saber porque. Os fins de semana eram tocados de forma a que ele surpreendesse a si mesmo, jamais fazia ideia do que faria na sexta, no sábado... mulheres, tantas, praia, bar, que não fossem os lugares e as pessoas as mesmas do anterior.

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E trabalhava, muito. Em casa, na rua, no escritório, visitando clientes, os recebendo, consultor financeiro. Gastava quase tudo, vivia bem. E agora isso, um vírus, reduzido à sua casa. Diziam-lhe que tinha muita sorte, morava com certo luxo, estava protegido, era jovem, seus pais estavam em segurança no interior, seus irmãos e irmãs tinham suas famílias, não precisavam de seu apoio financeiro. Enfim, um homem como ele com tantos amigos, uma vida tão rica de sucesso e experiências...

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Ele ouvia, as respostas costumeiras, por algum motivo, dele, elas saiam engatilhadas, enfileiradas, ordenadas no branco da pouca valia das frases quase feitas. Era uma habilidade nata, nascera assim, nunca hesitara em uma resposta, nunca lhe ocorrera dúvida sequer sobre o fim de todas essas conversas, para ele, banais. Esse dom, não lhe custava esforço algum, de alguma forma estava ligado a toda a sua prosperidade, o conduzia para portas sempre abertas, algumas calorosas. Não, não era apenas o fato de ser bem nascido. Era mesmo algo nato. E, agora, quando mencionavam a sua família observava alguma emoção naquelas colocações tão corriqueiras. Então eram importantes, interessante.

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Ele não se preocupava por nenhum segundo sequer com esse tal bem estar de família, nem via nada de extraordinário naquela abastança. Sua vida sempre fora sim, ele era o centro dela, fora mimado sim, mas era um esportista, mente ágil, passava segurança, todo brasão tem seus príncipes. Todos se alegravam, sentiam-se seguros na presença desses descendentes... essa era sua parte... se morressem? Pessoas ficariam tristes, seria doloroso, ele mesmo já tivera mais de um acidente, maior ou menor, conhecia a dor física sim.


O céu estava realmente nublado, mais um pouco de vinho, começar a noite devagar, hoje sem bebidas fortes. As árvores choram lhe ocorreu, parecem vítreas no caminho algumas vezes. O mais bonito, mesmo nos contornos desenhados de alguns condomínios, são as pequenas frestas que não se explicam, sempre gostara disso, um galho fora de ordem, uma florzinha ocasional, uma trinca na cerca, a poeira outonal. Nas trilhas que fazia era possível aspirar o ar forte e se encantar com o pequeno, o breve, o nascido do acaso, nem sempre enfeitado, mas, vital, sim, era a vida de verdade.


Tinha muita energia, devia ser um defeito, era um insensível, mimado.... não, superficial, pois zé, um dia mudaria. Iria beber como sempre no lugar de sempre, com pandemia ou não. Morreu este, aquela, outros doentes, ouvia falar. Superficial. Os amigos estavam tristes, se arriscavam, mas, tantos mentiam, o terror nos jornais. Sua vida, ia entendendo, era meio vazia, uma vibração forte mais vazia. Não se imaginava com tanto medo, inseguro, as paredes de sua casa o assustavam, não queria percorre-las sozinho noite adentro, nenhuma música preencheria aquele silêncio. Ainda daria tempo de compreender essa macia aura para além do movimento?


Jandira Zanchi é poeta, ficcionista e editora. Publicou Balão de Ensaio (2007), Gume de Gueixa (2013), Área de Corte (2016), A Janela dos Ventos (2017) e Egos e Reversos (2018).


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