Ferreira Gullar disse que a crônica é matutina. Que sai do casulo de manhã como uma mariposa, voando abaixo do sol recém-brotado, não criando caso com a morte. Mas esta aqui, nasce torta, errada, de namoro com a noite que se esfarela nas calçadas da cidade.
Precisava ser assim. Pois como falar do dia antes que ele aconteça? Que farinha colocar nessa massa se nenhum ovo foi quebrado, se a remela dos olhos ainda está grudada nas pálpebras? A crônica precisa renascer à noite.
Que seja durante a noite, então, o palco em que as palavras quadradas, ásperas, às vezes sem critério nem etiqueta serão ditas e que os barulhos da cidade, que insiste numa insônia insalubre, orquestrem os pensamentos daquele que ainda procurará as pantufas que desapareceram, que vai tentar salvar aquela raspa de sabonete para retirar o sal da pele e que lembrará, pela décima vez, que o colchão precisa tomar sol e que, se não chover no fim de semana, quem sabe se lembre que o mundo está girando mais rápido e que algumas coisas precisam ser mastigadas.
Isso porque a crônica não precisa ser apenas fresca, matutina, mas também nem tão pesada como feijoada de sábado; não precisa ser despretensiosa nem séria demais. Talvez deva ser como uma sopa, em que os pedaços do dia se juntem para dar o caldo que os músculos precisarão para se encaixarem na aspereza dos cobertores.
Por isso, essa crônica precisa ser ela mesma, para que alguém, em algum lugar pense sobre se o seu dia valeu a pena. Para fechar a costura que se abriu. Para refletir sobre se houve ou não feridos na luta diária por espaço nas ruas, nos coletivos, no estacionamento e durante as reuniões do setor, por segurança na caminhada dos parques e nos shoppings; para tentar construir um futuro que não seja indigesto. Por que não? Talvez, seja possível.
Ela deve existir para nos colocar em alerta, pois o sol vai nascer novamente e com ele virá a mariposa que se desmanchará até o fim do dia. E junto de suas asas os desejos de muitos anônimos, que enlouquecerão em suas esperanças sem voz, dormindo no chão duro das cidades. Com esta crônica talvez se desmanche a esperança de acordarmos como borboletas. Tomara que não.
Homero Gomes é escritor.
Homero Gomes - Escritor, é autor dos trabalhos ainda inéditos Sísifo Desatento (contos) e Jamé Vu. Colaborou com Rascunho, Cult, Germina Literatura, Ficções e TriploV. É editor do site www.jamevu.tumblr.com.