Aos 71 anos de idade, a ex-militante do Partido Comunista, Leonor Albagli, vai declarar pela primeira vez à Justiça contra os crimes de tortura que sofreu durante o regime militar uruguaio (1973-1985).
"Será a primeira vez que irei à Justiça por vontade própria", disse à BBC Brasil.
Sua audiência está prevista para esta semana, na capital uruguaia. A história de Albagli comove até seus colegas e ex-presos políticos, como Clarel de los Santos. "Foi terrível o que ela viveu", disse ele.
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Somente agora, trinta e seis anos depois, a ex-militante decidiu revelar os detalhes das torturas a que foi submetida nas duas vezes em que esteve presa pelos militares, de forma clandestina, entre galpões, prisões e um período num calabouço.
"Eu decidi falar quando soube que os crimes poderiam prescrever no dia primeiro de novembro. Acho que não pode haver perdão para o que fizeram", afirmou. Solteira e sem filhos, ela disse que "muita gente no Uruguai" desconhece que foram realizadas torturas contra os presos políticos naquela época.
Em entrevista à BBC Brasil, Albagli recordou que estava em casa com a mãe e a irmã quando soldados armados invadiram o local, revisaram armários e livros e a levaram com olhos vendados.
A detenção ocorreu em novembro de 1975 e durante nove meses, disse, até agosto de 1976, foi submetida a diferentes práticas de tortura, incluindo choques elétricos.
'Táticas de guerra'
Em 1977, ela foi presa novamente e passou seis anos sendo submetida a novas sessões de choques elétricos, entre outras formas de tortura que às vezes, recordou, só terminavam quando um médico dizia que era o momento de parar ou que ela poderia morrer, como aconteceu com ex-colegas de prisão e militantes.
Albagli contou que passou frio e fome e que foi submetida a "táticas de guerra" como quando mergulhavam sua cabeça num balde com excremento e só a tiravam quando já quase não podia respirar.
"O submarino (o mergulho no balde) era uma das táticas deles. Também passei dias seguidos com olhos vendados e fui submetida a choques elétricos em todo o meu corpo, incluindo meus (órgãos) genitais. Quando eu estava comendo, com olhos vendados, eles me davam socos no estômago. Muitas vezes, me deixavam nua e me apalpavam, sem escrúpulos", contou.
Ela disse que somente uma vez um médico falou aos militares que ela não aguentaria mais as torturas e a internou num hospital militar. "Mas depois me tiraram de lá e as torturas foram reiniciadas", disse.
Na prisão, recordou, não a deixavam tomar banho e a chamavam de "suja e judia". "Uma vez, me deixaram tomar banho e quando pedi uma toalha ligaram o ventilador para eu me secar. Eles não queriam nos machucar, eles queriam nos destruir", disse.
Ela e outros presos foram levados a uma espécie de julgamento onde os militares revelavam o que os outros tinham dito nas sessões de tortura. "Uma forma de nos jogar uns contra os outros."
A tortura a deixou com problemas na coluna e uma gastrite. A previsão é que Albagli e outros ex-presos também realizem, nos próximos dias, exames clínicos e psiquiátricos para que os médicos do Instituto Técnico Forense avaliem as consequências do que sofreram.
"Não me arrependo de nada do que fiz. Pela democracia e contra o autoritarismo, teria feito tudo de novo. Não tenho sonhos ou pesadelos com aqueles dias. Mas a vida durante aquele período (de torturas) e depois não foi fácil", afirmou.