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Paranoid Park

31 dez 1969 às 21:33
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Após "Gerry", "Elephant" e "Last Days", seria difícil acreditar que Gus Van Sant pudesse ao menos manter o mesmo rigor em seu próximo filme. Ao lado de Christopher Doyle (cinegrafista dos principais filmes de Wong Kar-Wai), no entanto, Van Sant não só se manteve implacável na condução da narrativa, mas como trouxe novas possibilidades para a sua própria filmografia. A influência de cineastas como o próprio Kar-Wai, Béla Tärr, Tarkovski e Sokúrov se mostram mais visíveis, tanto na condução da trama, quanto na simbiose entre música e imagem, um dos pontos altos do filme.

Porém, antes de analisar o filme especificamente, é importante dizer que 2007 foi um ano de exceção para o cinema americano – há muito tempo não se viam tantas obras-primas em uma mesma cinematografia. Essa espécie de retomada, que relembra o vigor de Hollywood nos anos 70, inclui desde diretores que se consagraram nos anos 90 ("Zodiac", de David Fincher; "Death Proof", de Quentin Tarantino; "We Own the Night", de James Gray; "There Will Be Blood", de Paul Thomas Anderson; "I’m Not There", de Todd Haynes), cineastas estabelecidos desde os anos 80 ("No Country for Old Men", dos irmãos Coen; "Inland Empire", de David Lynch; "Eastern Promises", de David Cronenberg), e nomes consagrados nos anos 70 ("Bug", de William Friedkin; "American Gangster", de Ridley Scott; "Before the Devil Knows You’re Dead", de Sidney Lumet). Ao acrescentarmos "Paranoid Park" teremos doze filmes de uma mesma cinematografia, coesa e representativa como há muito não se via, sem que haja uma lista de princípios, ideais ou motivações que unem ou caracterizam um grupo. (E isso é ótimo!)

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Dentro de propostas tão variadas, "Paranoid Park" talvez seja a possibilidade mais radical da atual cinematografia americana. O filme atinge várias proezas, e uma delas, é muito significativa: ao mesmo tempo em que Van Sant conta uma história (apresenta seu personagem, seus conflitos, uma trama), e cria um filme completamente inserido no universo de um esporte considerado "radical" (o skate), "Paranoid Park" não pode ser considerado uma obra de gênero, muito menos um típico filme americano, um thriller. Não temos acesso, por exemplo, ao que se passa na mente de Alex, o garoto que se envolve em um acidente na linha de trem. Não sabemos tudo ou até mesmo parte do que os personagens falam em momentos cruciais – Van Sant acelera ou torna mais lenta algumas cenas, como aquela em que a namorada de Alex discute o fim da relação, por exemplo. Não temos uma trilha sonora que complemente a emoção já esculpida pelo conflito dramático, ou pela trama: o som, nesse caso, é independente, como se Van Sant estivesse conectando o filme a uma realidade superior que necessariamente não se refere ao mesmo tema, ao mesmo universo, mas que mantém um vínculo indireto e cruel que nos assusta.

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Essas conexões elaboradas por Van Sant elevam o filme a uma categoria máxima (ao andar de cima, he), tornando "Paranoid Park" uma obra de encantamento sublime e radical. Jamais se viu um filme tão singelo, tão direto, tão frio e ao mesmo tempo tão condescendente sobre um ato tão brutal. Ao mesmo tempo em que observamos o cotidiano corriqueiro de Alex, suas relações familiares, seu universo reduzido, criamos uma compaixão quase absoluta por este personagem. Ele é ao mesmo tempo presente/concreto e virtual/enigmático: diz tudo, e parece permanecer em silêncio. Suas emoções contidas são tão impactantes quanto os momentos de vazio, de gestos banais, quase mecânicos. É como se Van Sant unisse uma certa crença de Bresson ao encantamento de Kar-Wai: para atingir o real (no caso desse filme), todos os artefatos se tornariam indispensáveis: deveria haver a anulação da consciência, do tempo, e o reconhecimento de que se trata de um filme – que seria impossível atingir este real. Para tanto, Van Sant une um grafismo cinzento, sombrio, a trechos da música terna de Nino Rota (utilizada inicialmente em "Giulietta degli Spiriti", obra irregular e multicolorida de Fellini), e a diversas sonoridades estranhas e irreconhecíveis.

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Essa fissura do real conquistada por Van Sant o aproxima de Lynch. Em "Inland Empire", e em boa parte da sua obra recente, Lynch parece observar o universo pop com devoção demasiada, até o momento em que ele encontra uma fresta, e mergulha nesse campo ínfimo, quase imperceptível, nos mostrando uma série de fatos desconexos e bizarros. A postura de Van Sant, no entanto, é diferente: ele entra por uma fresta para ampliar o seu deleite: as câmeras lentas de "Paranoid Park" renovam e ao mesmo tempo reduzem a compreensão do real. E esse é o grande ponto do filme: não há como compreender completamente um fato isolado, fortuito, ou até mesmo motivado por razões inúmeras que podem ou não ser aliadas ao acaso. Fora de qualquer explicação psicológica, para além de qualquer defesa ou justificação moral de um ato, está a ação concreta, o fenômeno, o objeto fílmico que Van Sant exibe, esculpe sob o signo do fragmento, da simultaneidade, sem exigir compreensão, muito menos compaixão. O filme nos direciona para uma consciência sobre nós mesmos muito estranha: um saber lento, mordaz, e também estimulante. Você se sente vivo na zona limítrofe mais perigosa: Van Sant utiliza esse princípio ao máximo.


As cenas em que mais nos deparamos com uma consciência interna de Alex são as mais memoráveis. São momentos plenos, vazios, contraditórios ao extremo, como o dia em que Alex pede a uma amiga uma carona em sua bicicleta. Ela segue pedalando, e ele, em seu skate, permanece cabisbaixo, agarrado à bicicleta, como se aquela fosse a trajetória da sua vida, daquele momento que vivia – não há mais o que fazer: o que resta é seguir.

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Há também nuances formidáveis que Gus Van Sant alinha, ao longo do filme, tornando "Paranoid Park" a experiência estética mais impactante dos últimos anos. Assim como nos desenhos de "Tom & Jerry", em que nunca víamos o rosto da mulher que arrumava a cozinha, em "Paranoid Park" não temos acesso ao rosto da mãe de Alex, nem ao rosto do seu tio (que, aliás, é interpretado pelo diretor de fotografia Christopher Doyle). O próprio nome Alex é uma alusão possível ao protagonista de "A Clockwork Orange", de Stanley Kubrick. E a cena em que surge a figura do pai, relativamente próximo a Alex, mas também distante e bizarro, é um tanto representativa: ela revela todo o caos da vida familiar do personagem, uma rotina ainda mais dramática pela figura do irmão mais novo – que não sabemos se é apenas frágil, ou se convalesce de um mal maior.


A frieza com que Alex lida com alguns fatos e a sinceridade impressionante que ele demonstra em várias atitudes criam um sentimento ambíguo em sua volta: sua personagem se torna inclassificável, escapando a qualquer esquema dramático.

Produzido com atores não-profissionais (escolhidos via MySpace), composto por imagens em 35mm e em Super-8 (cenas de skate), repleto de sons distintos e ao mesmo unificados pela montagem de Van Sant, "Paranoid Park" é o grito mais silencioso e simbólico do cinema contemporâneo: nele se encontram a devoção irrestrita e aceitação do cinema como linguagem; o encantamento com a figura humana; a utilização do som como elemento novo, dissonante, simultâneo; a concepção visual independente da trama e subordinada ao contexto; além de uma montagem fragmentada e ao mesmo tempo narrativa. É o que há de mais sofisticado no momento: o ponto máximo de um cinema em transição.


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