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Through a glass darkly

09 out 2005 às 11:00
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Bergman. Sempre ele.

Ontem, antes da chuva, encontrei Através de um Espelho em DVD. O filme é de 61. Oscar de melhor filme estrangeiro, fotografia do velho Sven Nykvist, grandes atores. Bergman em sua melhor fase. The sixties.

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Mas o que me espantou não foi o tom soturno do filme. Muito menos o seu apuro visual. Entre tantos trechos realmente desconcertantes, no meio da trama, surgiu o diálogo que reproduzo abaixo, um dos mais sinceros e comoventes que já vi no cinema. Não se trata de uma série de falas refinadas ou pensamentos complexos. Não. Bergman reproduz um certo dilema que, creio eu, nos atinge até hoje. Após a descoberta de que somos sempre solitários, de que estamos sós, inevitavelmente, de que o mundo é uma eterna incerteza... como se apegar ao outro, se entregar? Como escapar do individualismo quando tudo é tão amargo e falso?

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Nesse diálogo entre e Gunnar Björnstrand [Martin, pai de Karin] e Max Von Sydow [marido de Karin], não há uma resposta definitiva a este dilema, e sim, um retrato, cruel e insípido, da nossa face mais nua: o egoísmo.


A cena se passa em um barco. Martin começa o embate:

- Parece que vai chover.
- Você acha?
- O que há com você?
- Como assim?
- Está quieto, quase hostil.
- Não vale a pena dizer.
- Por favor.
- É sobre a Karin.
- A Karin?
- Ela mexeu na sua escrivaninha e encontrou o seu diário. E o leu, é claro.
- Não.
- O que você escreveu? Karin pediu que eu te perguntasse.
- Escrevi que a doença dela é incurável. E que meu impulso era registrar o progresso da doença. Não há a quem mais culpar. Isso não tem desculpa.
- É sempre sobre você e suas coisas. A sua insensibilidade é perversa. "Registrar seu progresso". Típico!
- Você não entende.
- Não, não entendo. Mas entendo uma coisa. Está sempre à procura de tópicos. A insanidade da sua filha. Que ótima idéia! Eu a amo, Martin. Você a ama? Você não tem sentimentos. Nem decência você tem. Você sabe se expressar bem. Sempre encontra as palavras certas. Mas há uma coisa sobre a qual você não entende nada. A vida. Você é um covarde. Mas um gênio em se tratando de evasões e desculpas.
- O quer que eu faça?
- Escreva o seu livro. Talvez ele lhe traga o que seu coração deseja. A sua obra-prima como escritor. Aí não terá sacrificado a sua filha em vão e...
- Vá... [pausa] em frente.
- [aproximando-se] Em seus livros, está sempre cortejando algum deus. Mas ouça... a sua fé e a sua dúvida não convencem. Apenas a sua engenhosidade é aparente.
- Acha que não sei disso?
- Então por que continua? Por que não opta por algo respeitável?
- Por exemplo?
- Alguma vez em sua carreira escreveu alguma palavra verdadeira?
- Não sei.
- Viu? As suas meias-verdades são tão precisas que até parecem verdades.
- Eu faço o que posso.
- Talvez sim. Mas fracassa.
- Eu sei.
- Você é vazio, mas esperto. E está tentando preencher este vazio com a extinção da Karin. Mas não sei como poderá trazer Deus a esta questão. Ele pareceria ainda mais inescrutável.
- Posso fazer uma pergunta?
- Claro.
- Sempre consegue controlar seus pensamentos mais profundos?
- Felizmente, não sou muito complexo. Meu mundo é bem simples. Claro e humano.
- Mas desejou que a Karin morresse?
- De jeito nenhum. Apenas você pensaria tal coisa.
- Pode jurar que nunca pensou nisso? Seria lógico. Sabe que seu caso é irremediável e que o sofrimento de vocês é inútil. Se morrer, dá na mesma.
- Você é grotesco.
- Isso depende do ponto de vista.
- Eu a amo. Estou impotente. Só posso ficar a observar enquanto ela se transforma em um pobre animal atormentado.
- Vou lhe dizer uma coisa. Quando eu estava na Suíça, eu decidi me matar. Aluguei um carro e encontrei um penhasco. Eu me preparei calmamente. Era fim de tarde, o vale já estava escuro. Eu estava vazio. Sem medo, remorso ou expectativas. Mirei o carro para o penhasco, pisei no acelerador e o carro morreu. O carro morreu. O carro deslizou nos cascalhos e de repente parou as rodas dianteiras sobre o penhasco. Eu saí rastejando, trêmulo. Eu me apoiei em uma rocha à beira da estrada. Fiquei horas recuperando o fôlego.
- Por que está me dizendo isso?
- Para que saiba que eu não quero mais mentiras. A verdade não causará uma catástrofe.
- Isto não é sobre a Karin.
- Acho que é.
- Eu não entendo.
- Nesse vazio dentro de mim, nasceu algo que não compreendo... cujo nome não sei. Um amor. Por Karin. E Minus. E você. Um dia, talvez eu conte tudo. No momento, não ousaria. Mas... se for como eu espero que seja... Por enquanto chega.


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