Família

Famílias de vítimas de crimes criam grupo e buscam se ajudar

02 fev 2021 às 14:42


Marisete Perin aguardava notícias da filha, Paula Perin Portes, 18, no primeiro semestre de 2020, quando ouviu falar de um grupo de famílias que conheciam o sentimento de angústia que ela sentia. Paula havia desaparecido em Soledade (a 216 km de Porto Alegre) e não havia pistas sobre ela.

Depois de mais de 60 dias de buscas, em agosto, a Polícia Civil localizou o corpo da jovem, enterrado em um local de difícil acesso. A perícia constatou morte por asfixia. O inquérito indiciou cinco pessoas, quatro delas por envolvimento na execução da morte.


No pior momento da sua vida, Marisete começou a conversar com Sônia Fátima Moura, 55, outra mãe que conhecia essa dor e estava em Campo Grande (MS), a 1.256 km de distância de sua cidade, Fontoura Xavier (RS).


Dez anos antes, Sônia havia perdido a filha, Eliza Samudio. O caso gerou repercussão nacional devido ao envolvimento do então goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes. Assim como Paula, Eliza desapareceu, mas o corpo dela nunca foi encontrado.


"Eu ficava só escutando ela me falar o que aconteceu. Ela me disse: 'essa dor e esse vazio a gente vai ter que carregar para o resto da vida, porque nunca mais será a mesma coisa'", conta Marisete. "Eu levanto, eu deito e meu pensamento é [na Paula], 24 horas. Só quem passa por isso para saber como é."


"Você sente como se você estivesse se afogando na sua própria dor. Ela disse que se sentia assim e não sabia falar. É importante a gente saber que, em algum lugar, existe outra pessoa que já viveu a dor que a gente vive e que a gente pode compartilhar. Eu me sinto útil, me sinto bem, apesar de que a gente lembra das dores e acaba chorando", diz Sônia.


Ela descobriu grupos que reuniam famílias de vítimas de violência anos depois da morte de Eliza. Por meio de um deles, conheceu as mães de Bianca Consoli, assassinada pelo cunhado em 2011, de Renata Miguel, morta em 2013, e de Eloá Pimentel, sequestrada e morta pelo namorado em 2008.


Desde o ano passado, elas estão entre as famílias que se uniram em um novo grupo, sob um novo nome: União de Vítimas. Pais e mães que perderam filhos assassinados, por algum outro crime ou que estão desaparecidos auxiliam famílias em situação parecida, com apoio psicológico e ajuda para navegar nas relações com a Justiça e a imprensa.


"Você está perdido, sem saber lidar com determinadas situações e, de repente, surge um grupo de pessoas sabe Deus de onde e vem te trazer um abraço, falar com você, mostrar quais os passos que você tem que dar se for precisar de ajuda psicológica, de apoio de advogados", conta um dos integrantes, Luis Alberto Vaz, 36, pai de Vitória Gabrielly, assassinada em 2018, em Araçariguama (SP).


Dois meses depois da morte da filha e do contato com outros pais, Beto recebeu uma ligação perguntando se ele poderia conversar e ajudar uma mãe que estava vivendo situação parecida.


Com representantes em vários estados, todos eles familiares que passaram por traumas, só entre dezembro e janeiro o União de Vítimas recebeu 30 novos casos para atender.


No site, onde são listados os casos acompanhados, há várias histórias que ocuparam por tempos as páginas dos jornais, mas algumas famílias se afastaram, segundo a diretora Elizabeth Misciasci. Atualmente, diz ela, há cerca de 90 membros ativos no grupo de WhatsApp do União de Vítimas.


"Esse objetivo de transformar em um grupo de projeção nacional é porque, infelizmente, a todo tempo tem coisas acontecendo no Brasil inteiro. Devido à pandemia, não conseguimos dar andamento, mas esse projeto continua", diz Beto.


"O União de Vítimas, o próprio nome fala, está familiarizado com várias situações. São vítimas de agressões, assédio, abuso, pessoas que sofrem descaso da Justiça, pessoas que estão desaparecidas, mas o processo está parado", diz Angelita Miguel, mãe de Renata (morta em Mauá em 2013) que hoje toca projeto de palestra em escolas contra bullying, depressão, suicídio.


"Depois que eu perdi minha filha, minha vida mudou por completo. Hoje eu vivo em função de ajudar pessoas. Isso me traz alegria, motivação, sentido à vida. Se eu não tivesse tomado esse caminho, talvez eu seria mais uma mãe ferida, amargurada, sufocada na própria dor."


Diante de situações de violência e dos desdobramentos de processos jurídicos que podem levar anos, o apoio de um coletivo pode servir como lugar seguro quando se vive uma dor, segundo a professora da PUC-SP e coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre o Luto, Maria Helena Franco.


"Ao compartilhar, você ouve sua voz falando e aquilo dá mais concretude. Você não guarda aquele sentimento que causa mal-estar, que causa sofrimento. Você falar para alguém que te escuta atentamente, que está ali para você. Isso ajuda extremamente no processo de luto", diz.


"É um ajudando o outro, uma mãe chora de lá, outra chora de cá. Um dia uma está melhor e conversa com aquela", conta Marta, que teve a filha Bianca assassinada pelo genro, cunhado da jovem. Foi ela quem encontrou a filha caída no chão da sala de casa. Mesmo com o pescoço rígido e o tom roxo nos lábios, Marta não queria acreditar que ela estava morta.


Na missa de sétimo dia, quando ainda não se sabia quem havia cometido o crime, Marta foi abordada por um grupo de pessoas, vestindo camisetas com as fotos de seus filhos, como Ives Ota, sequestrado e assassinado em 1997.


"O chão poderia abrir e me engolir que não teria problema algum. Os primeiros dias foram muito difíceis", lembra ela. "Eu falei: como vocês estão de pé? Como vocês conseguem caminhar? Foi onde eu comecei. Se eles conseguiram, eu também ia conseguir. Terminada a missa, ficamos mais umas duas ou três horas em conversa ali."


Cada pessoa vive o luto de uma forma diferente. Ana Cristina Pimentel da Silva, 54, mãe de Eloá, que ficou sequestrada por cerca de 100 horas pelo namorado, em um caso com transmissão ao vivo pela TV, conta que é procurada por muitas pessoas, inclusive pela decisão de doar os órgãos da filha.


"[O grupo] ajuda, sim, porque se eu quiser conversar com alguém, com a Marta, a Angelita, com outras mães, eu sei que sempre vou contar com eles", diz ela, que hoje diz preferir guardar a dor para si.


"Um dia você está bem, no outro dia você está triste, e você vai levando. O que me deixou de pé foi servir ao Senhor e ao consolo do povo. A Justiça que eu espero é a de Deus, porque a daqui eu não vou ter."


Muitos dos relatos das famílias passam a sensação de frustração com os sistemas de segurança e justiça, o que leva alguns deles a transformarem a busca por mudanças em causas.


Para quem perdeu alguém que amava, toda investigação é lenta e qualquer punição não parece suficiente. Em muitos casos, há reclamações sobre pouco retorno e informações ou processos que se arrastam por muito tempo até uma resposta.
Para Daniel Achutti, pesquisador do pós-doutorado da PUC-RS e especialista em justiça restaurativa, o sentimento de injustiça pode ser explicado pela estrutura do processo penal brasileiro, centrada no réu e que não inclui as essas pessoas e o que elas pensam.


A participação delas, geralmente, se restringe a um meio de obtenção de prova, por meio de depoimentos prestados nas fases do processo.


"A gente não tem, no Brasil, esses serviços de apoio estruturados, ninguém liga para a essas pessoas para perguntar se ela precisa de apoio. Isso acaba fazendo com que as pessoas se sintam jogadas à própria sorte", avalia Achutti.

"O Brasil tem um exército de vítimas para quem ninguém dá bola. Se o Judiciário ou o Ministério Público fizessem esse tipo de serviço, de apoio, tenho a impressão que a avaliação da população em geral, em relação ao sistema de justiça, seria melhor."


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