Quando deu o ponto final em Prisioneiras - livro cuja primeira fornada de 70 mil exemplares a Companhia das Letras foi lançado no último sábado (13) - o médico e escritor Drauzio Varella viu-se diante do final de uma jornada de 28 anos. Esse foi o período em que trabalhou como voluntário em presídios paulistas, experiência que lhe inspirou a escrita Estação Carandiru (1999), depois Carcereiros (2012), até fechar a trilogia com Prisioneiras. Só o trabalho na cadeia deve continuar. "Não consigo pensar em outro livro sobre a cadeia - as histórias que tinha para contar estão ali. Sobraram algumas avulsas, mas que só poderão inspirar contos. Acredito que consegui dar uma ideia de como vivi essa experiência", afirma.
Prisioneiras traz suas observações como médico voluntário na Penitenciária Feminina de São Paulo, que abriga mais de duas mil encarceradas. Com a escrita fluente que lhe é peculiar, Varella descreve um mundo peculiar, em que o amor e a sexualidade dominam as relações entre as presidiárias, muitas ali estão por conta de seus parceiros - como as flagradas ao tentar levar drogas aos companheiros nas penitenciárias masculinas. E como, depois de presas, vivem em solidão.
Varella descreve ainda o nascimento e a consolidação do Primeiro Comando da Capital, o PCC, facção criminosa que impôs severas regras ao ambiente carcerário, e que surgiu para suprir a incompetência do Estado em cuidar do número cada vez mais crescente de presídios. Sobre tais assuntos, Varella conversou com a reportagem.
Leia mais:
Brasil perdeu quase 7 milhões de leitores de livros em 5 anos, aponta pesquisa
Saiba mais sobre a nova edição da biografia de Chico Buarque oito ponto zero
Professoras da rede municipal de Londrina lançam livro sobre folclore japonês nesta sexta
Editora da Folha de Londrina lança livro sobre o cotidiano da cidade nesta sexta
Como você avalia a experiência de escrever a trilogia?
Pude acompanhar as mudanças que aconteceram nas cadeias e no Brasil. O País de 1989 é muito diferente do de hoje e o crime também evoluiu, ganhando mais força, se organizando. No Carandiru, existiam pequenas facções, com número reduzido de presos e uma era inimiga da outra, sem a possibilidade de emergir uma que dominasse. Mas era certo que, em algum momento, isso aconteceria, nesse processo darwiniano.
Que é o PCC. Seria leviano dizer que o PCC se tornou um mal necessário, uma vez que diminuiu a quantidade de assassinatos até fora da cadeia?
Eu não diria isso porque não pode existir um mal desse tipo que seja necessário. Mas não se pode negar que os presídios dominados pelo PCC são menos violentos porque a violência é punida com rigor. Eles surgiram com o pretexto de vingar o massacre dos 111 presos e acabar com a opressão no sistema carcerário - está no estatuto da organização. Se não tivesse havido o massacre, talvez não tivesse existido o PCC, quem sabe outra organização. Eles tinham que garantir a segurança do preso porque sabiam muito bem que a principal opressão não vinha do Estado, do sistema penitenciário, mas dos próprios presos, que se esfaqueavam, extorquiam, abusavam da família. Eles vieram pra organizar esse sistema. Não tem mais extorsão, estupro, nem crack. Nunca imaginei que um dia o sistema penitenciário ficasse sem crack. O Estado nunca teria acabado com isso.
O senhor falou do crack. O tráfico hoje seria um dos principais causadores do aprisionamento das pessoas?
Acredito que o tráfico de um modo geral, não só do crack, mas da maconha, da cocaína em pó. Principalmente na cadeia feminina. Mais de 60% das presidiárias foram enquadradas no artigo 33, que é o do tráfico. A nova lei do tráfico causou essa explosão de presidiários no País todo. Quando escuto comentários sobre a necessidade de termos uma lei mais rígida, penso em onde colocar todas essas pessoas.
E o que o senhor pensa sobre as leis em relação às drogas?
Acredito que teremos de liberar as drogas. É uma questão de tempo. Não é possível manter uma lei tão restritiva. Liberar não significa deixar de regulamentar. Temos regras em relação ao cigarro, ao álcool e isso precisa acontecer com as demais drogas, mas sei que não é tão simples. Quando vejo passeatas pregando a legalização, penso: legalizar significa o que exatamente? Liberar geral? As quadrilhas que hoje vendem droga poderão fazer legalmente? E os que estão presos por tráfico vão deixar as cadeias porque deixou de ser crime? A produção da maconha deverá ser estatizada? E será possível confiar na capacidade do Estado de evitar corrupção e um tráfico paralelo? Não é simples. Temos de começar aprendendo e podemos começar com a menos maléfica de todas, a maconha. A partir daí, surgirá o estudo de medidas que podem ser implementadas para tirar o usuário da mão do traficante. Isso vai ter um impacto muito grande porque mais da metade do lucro vem da maconha, uma vez que a quantidade de usuários é maior.
O que pensa da pena de morte?
Funciona no crime, onde tem uma função didática. Porque é aplicada imediatamente. Nenhum país que aplicou a pena de morte reduziu a criminalidade. Um exemplo são os Estados Unidos. Mas não reduziu por quê? Porque a sociedade não pode cometer erros jurídicos - é preciso dar todas as oportunidades de defesa e isso leva tempo. Entre o crime ser cometido e a execução condenada, podem passar anos, décadas. Aí é uma maldade, uma vingança da sociedade. Todo mundo já esqueceu, outros já morreram. Eram crianças quando ocorreu o crime e agora são adultos. A sociedade se vinga de uma pessoa. Isso não reduz a criminalidade. Já entre a bandidagem reduz porque a punição é imediata. Você comete um crime de acordo com as leis locais e você morre no dia seguinte, às vezes no mesmo dia. O que serve como lição porque os que estão próximos sabem que, se cometerem o mesmo erro, morrem.
Presidiárias grávidas são obrigadas a se separar do filho quando a criança completa seis meses. Talvez seja a pior das punições. Mas há exceções, como a de Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sérgio Cabral, que conseguiu sair da prisão para cuidar dos filhos.
A repercussão foi muito grande. No dia em que Adriana foi liberada, cerca de 30 presidiárias comentaram comigo. "Quem tem dinheiro pode e eu fico aqui", diziam. E você reconhece as mulheres que ficaram sem os filhos apenas pelo olhar. É como se fosse a capa de livro sobre depressão: um olhar morto, vazio.
O senhor pretende continuar com esse trabalho?
Enquanto tiver condição, vou fazer. Aqui, elas falam de sentimentos, estabelecendo uma relação de confiança. Estou há tanto tempo que já tratei de famílias. Já cuidei do avô, do pai e do filho. E, mesmo na feminina, já tratei da mãe e agora estou tratando da filha.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.