Há 40 anos, morreu a escritora ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector, um dia antes de completar 57 anos. Ela escreveu romances, contos, crônicas, histórias infantis. "A Hora da Estrela", "A Paixão Segundo G. H.", "Laços de Família", "Felicidade Clandestina", "Perto do Coração Selvagem", "A Vida Íntima de Laura"... Sua obra segue aberta para muitos leitores, que retomam a leitura em busca de novas respostas, de um maior entendimento de si e do outro.
Ela foi e continua sendo amplamente admirada por aqueles que a conheceram e por aqueles que não a conheceram pessoalmente. Nélida Piñon e Marina Colasanti foram suas amigas, por exemplo. Suzana Amaral adaptou seu romance mais popular, "A Hora da Estrela", para o cinema. Maria Fernanda Cândido estará em "A Paixão Segundo G. H.", filme de Luiz Fernando Carvalho. Yudith Rosenbaum fez de Clarice, e seus mistérios, seu objeto de estudo. Nádia Battella Gotlib também. A escritora Simone Paulino se diz tão tocada pela autora que até escreveu o livro "Como Clarice Lispector Pode Mudar a Sua Vida". Carol Rodrigues é uma escritora da nova geração, leitora de Clarice e que discute seus textos em oficinas que faz com adolescentes. Mariana Valente não conheceu a avó, mas encontrou, com a ajuda dela, um caminho.
A convite da reportagem, elas falaram de sua relação com Clarice. É uma forma de homenageá-la.
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Nélida Piñon, escritora
"De escassas palavras fora da intimidade"
Foram 17 anos de amizade diária. Quando não nos víamos, sempre antes das 19 horas - falávamos ao telefone. Embora de origem judaica, a grande autora tinha a intensidade recôndita de um mujik russo, saído de algum romance de Tolstoi.
Contudo, delicada e emotiva, era de escassas palavras fora da intimidade. Mas, de amplos gestos, surpreendeu-me um dia com um quadro pintado por ela, em minha homenagem, que tinha como tema e título "Madeira Feita Cruz", nome do meu segundo romance publicado em 1963. Uma tela de dupla simbologia: o pleito à amizade que só cessou no seu leito de morte, eu retendo-lhe a mão esquerda, e a sua crescente atração pela figura do Cristo, na pintura colgado da cruz, entre os dois ladrões. Até hoje custa-me falar da amiga Clarice.
Simone Paulino, editora e escritora
"Poucas pessoas foram tão essenciais"
De tudo, o que mais me comove é a morte. Era muito cedo. Sempre é. Mas nunca me esqueço da história do momento em que ela vai para o hospital de onde não sairia mais e pede ao motorista do táxi: "Faz de conta que estamos indo para Paris". Eu tenho 45 anos. Faz 40 anos que ela morreu. A rigor, vivi a vida inteira "sem ela". Mas poucas pessoas foram tão presentes, tão essenciais para a minha existência quanto Clarice.
Carol Rodrigues, escritora
"O que me provoca: Não basta olhar se os olhos ainda são meus"
Acho que grande parte dos mistérios mora nos focos narrativos ousados, e os da Clarice são, geralmente, extrapolados, não apenas no acesso ao outro, mas numa implosão silenciosa da noção de outro. Sempre leio o conto "Uma Galinha" em oficinas para adolescentes e toda vez acontece uma descoberta diferente desse ser galinha que é o próprio ser, não humano, mas o ser mortal, e volta e meia alguém se espanta: como uma humana sabe tanto do não humano? Clarice é generosa nessa partilha e talvez tenha desconfiado desde muito cedo da humanização enquanto categoria criativa. Enfim, acho que esse é o lado dela que mais me provoca, o de não bastar olhar se os olhos ainda são meus.
Yudith Rosenbaum, professora de literatura
'Sua escrita é perturbadora e tende a nos desestabilizar'
Meu primeiro contato com a autora se deu no final da adolescência, com o conto "Amor", de "Laços de Família" (1960), e o romance "A Paixão Segundo G.H." (1964). Fiquei arrebatada e assustada. Desde então, acredito que não se lê Clarice impunemente. Sua escrita é perturbadora e tende a nos desestabilizar. Com uma linguagem insólita, que une substantivos com adjetivos imprevistos ("alegria difícil", "felicidade insuportável", "horrível mal estar feliz"), o leitor adentra um universo estranho e revelador. Ela provoca uma espécie de despertar de um sono anestesiado e nos mostra que não somos tão sólidos e seguros como pensamos. Senti nas primeiras leituras que o mundo era mais do que rótulos e papéis, o que violentava meus hábitos e minhas defesas. Por isso mesmo, sua literatura também liberta. Mas é preciso pagar o preço de olhar-se ao espelho. Só pude terminar "A PSGH" ["A Paixão Segundo G.H."] 20 anos depois.
Mariana Valente, artista e designer
'Ela ressignifica o sentido da Palavra'
Infelizmente, não conheci minha avó pessoalmente, mas através de seus livros e histórias de família. Minha formação como designer me levou a encontrar na colagem minha linguagem gráfica e subjetiva. Clarice ressignifica o sentido da palavra, e acredito que foi com ela que aprendi a ressignificar imagens.
Maria Fernanda Cândido, atriz
"Li 'A Paixão' aos 29 e não me recuperei"
Li "A Paixão Segundo G.H." quando eu tinha 29 anos. Não me recuperei até hoje. Ainda bem. A constatação de que o agora não para é cruel e libertadora, ao mesmo tempo. Como diria Clarice, o livro me deu uma alegria difícil, mas chama-se alegria.
Marina Colasanti, escritora
'Ela foi sempre mais infeliz que feliz'
Ficou uma ternura enorme por ela. É uma ternura que corre paralela à admiração, mas não se embaralha. Desde os 15 anos, eu a lia na Revista Senhor. Juntava dinheiro de mesada para ler Clarice. Depois, já como jornalista, fui responsável por Clarice no Caderno B do Jornal do Brasil, cuidava dos seus textos, era eu que lhe fazia as comunicações, que a atendia caso ligasse. Quando casei com Affonso [Romano de Sant'Anna], que tinha uma relação literária com ela desde Belo Horizonte, a nossa relação se intensificou.
Eu tinha um sentimento de proteção em relação a ela, de querer protegê-la porque ela era muito desamparada. Sofria muito, Clarice. Mesmo quando estava alegre, não estava nunca no mesmo patamar dos outros, na mesma confraria dos outros, havia sempre uma coisa que a impedia de chegar. Um vidro, uma coisa. Ela foi sempre mais infeliz que feliz e me inspirava, eu sendo tão mais jovem que ela, um sentimento de proteção e ternura.
Suzana Amaral, cineasta
'Ela até pode parecer o meu alter ego'
Eu só a conheci literariamente e senti uma identificação de cabeça muito grande com ela, não sei por quê. É muito misterioso, não sei explicar. Clarice é uma pessoa estranha, não estranha desconhecida, mas uma pessoa estranha. Ela até pode parecer um pouco o meu alter ego.