A recente polêmica envolvendo o uso de uma nova substância contra o câncer - aparentemente bastante promissora, porém não testada - reacendeu o debate sobre os riscos enfrentados por pacientes, sobretudo aqueles mais vulneráveis, os doentes terminais.
Na última semana, a prestigiosa revista científica Nature entrou na polêmica. Em editorial, a publicação criticou a liberação da fosfoetanolamina no Brasil, depois que o Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma liminar, obrigou a USP a fabricar e distribuir o medicamento antes dos testes clínicos em seres humanos.
Segundo a revista, "a controvérsia no Brasil sobre o acesso a uma suposta cura do câncer pode criar um precedente perigoso". A molécula desenvolvida na USP vinha sendo distribuída em forma de comprimidos experimentais para pacientes com câncer terminal, sem nunca ter passado por todas as fases exigidas de teste. Na verdade, ela foi testada com sucesso apenas em camundongos.
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Talidomida
A exigência de maior controle sobre a toxicidade de novas drogas em todo o mundo surgiu no início dos anos 60, depois de uma tragédia que marcou toda uma geração e levantou um intenso debate mundial sobre a segurança dos medicamentos.
A talidomida chegou ao mercado em 1957 como um poderoso sedativo eficaz contra ansiedade, insônia e tensão. A droga havia sido testada em camundongos e se revelara totalmente inócua. Tão inócua que os médicos não tiveram nenhuma dúvida em indicá-la para grávidas. O novo remédio acabou se revelando especialmente eficiente contra enjoos matinais – típicos dos primeiros meses de gestação - e foi receitado em larga escala para gestantes.
Na verdade, como logo ficou claro após o uso em massa, a talidomida é extremamente tóxica. Tão tóxica que se calcula que dez mil crianças tenham nascido em todo o mundo com deformidades físicas graves causadas pela droga - a substância faz com que os membros superiores e inferiores não se desenvolvam propriamente.
A tragédia foi tão grande que a droga acabou sendo proibida em todo o mundo. "A talidomida tinha sido testada em fêmeas de camundongos grávidas e não se mostrou tóxica", conta o coordenador do Programa de Pós-graduação em Bioética da Universidade de Brasília (UnB), Volnei Garrafa, que também é integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco. "E fez o estrago que fez."
Ocorre que – e os cientistas descobriram isso da pior forma possível – muitas substâncias que não se revelam tóxicas em camundongos, por exemplo, podem se mostrar danosas para outros mamíferos. E mesmo aquelas que são inócuas para vários animais, podem se revelar extremamente tóxicas para os seres humanos.
E foi a partir dessa constatação que se estabeleceu boa parte do protocolo de testagem de medicamentos em voga até hoje. Por isso, uma nova droga, para ser aprovada, precisa ser testada em pelo menos três diferentes animais e também nos seres humanos – em nada menos que quatro fases.
É um processo caro e, muitas vezes, extremamente frustrante para os pesquisadores envolvidos, sobretudo em um país de recursos científicos escassos como o Brasil. Mas necessário para a segurança da população, na opinião de vários especialistas, e também para a viabilidade econômica do sistema público de saúde.
Fosfoetanolamina
A fosfoetanolamina sintética foi desenvolvida em 1990 por Gilberto Orivaldo Chierice, professor de Química da USP - São Carlos. As cápsulas eram produzidas e distribuídas gratuitamente por ele a pacientes na própria universidade.
O uso da fosfoetanolamina se tornou uma polêmica com dimensão nacional no mês passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou o seu uso como medicamento experimental, depois de um pedido de um paciente. A liminar derrubou uma decisão anterior do Tribunal de Justiça de São Paulo, que havia suspendido o fornecimento do remédio a 1.400 pacientes de câncer na cidade de São Carlos.
A situação chegou a tal ponto que o governo decidiu intervir e, agora, finalmente, começou a testar formalmente a molécula em laboratórios credenciados em cinco Estados no país. Na semana passada, o secretário de Saúde de São Paulo anunciou que o Estado vai testar a substância em mil pacientes.
O drama de pacientes terminais impedidos de tomar um remédio que, supostamente, poderia ajudá-los, causou impacto na população e fez com que muita gente saísse publicamente em defesa da liberação da droga. Por que negar a um paciente que vai morrer de qualquer forma essa chance? A questão, porém, é um pouco mais complexa.
Cientistas da área médica são contundentes em afirmar que é uma irresponsabilidade autorizar acesso público a drogas que não foram testadas em seres humanos. "Não há segurança para o paciente", diz Volnei Garrafa. "Porque não sabemos como a droga se comporta no ser humano, quanto tempo leva para ser eliminada pelo organismo, os efeitos colaterais, as interações medicamentosas."
A dosagem dos remédios, lembram os especialistas, também é determinada pelos testes. Muitas vezes uma dosagem baixa pode ser totalmente ineficaz, enquanto uma dose alta é tóxica. A dose exata de cada remédio é crucial para o seu melhor aproveitamento. O período durante o qual a substância é consumida também é importante.
(com informações do site BBC)