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Vamos falar sobre haicai? - Texto de Éder Fogaça

13 out 2023 às 08:00

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VAMOS FALAR SOBRE HAICAI?

O autor do texto, Éder Fogaça, agradece a preciosa colaboração do Mestre Carlos Martins.

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O haicai é um poema curto de três versos que tem sua origem no Japão do século XVII e trata, sobretudo, da impermanência da natureza, seja ela humana ou não.

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Nomes importantes da poesia brasileira se debruçaram sobre essa forma poética e o resultado foi encantador.

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Neste artigo, vamos ver um pouquinho de como surgiu o haicai, passando pela chegada e desenvolvimento dele no Brasil, assim como a forma de criar um bom poema desse gênero poético.


HISTÓRICO DO HAICAI

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No princípio, havia uma forma poética clássica no Japão chamada waka (posteriormente também chamada de tanka) composta por 5 versos (5-7-5 7-7 sílabas). Do waka, surgiu o poema colaborativo conhecido por renga, especialmente cultivado por membros da corte imperial japonesa, quando um poeta criava a primeira estrofe de três versos (5-7-5 sílabas), denominado hokku, e outro poeta então escrevia nova estofe de dois versos (7-7 sílabas), e assim por diante. Mais tarde, nasceu outra modalidade de poema coletivo, no mesmo formato do renga, de tom mais satírico, denominada renku, haikai ou haikai no renga, encadeamento esse composto por pessoas do povo, comerciantes, militares, etc. O poema haicai, como conhecemos atualmente, surgiu do desmembramento do hokku do haikai no renga.

O hokku tinha regras bem estabelecidas para iniciar um haikai no renga. Deveria ter um termo que remetesse a estação do ano (kigo) e a separação em de 5-7-5 sílabas poéticas, que para os japoneses são sons. 

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O hokku foi isolado do haikai no renga por Matsuo Bashô (1644-1694) no século XVII, o grande mestre japonês de haicai, que adicionou um conteúdo mais elevado ao poema, por influência budista. Já no século XIX, Masaoka Shiki (1867-1902) cria o termo haiku, uma junção de duas sílabas dos termos haikai com hokku. Com isso, pregando uma abordagem mais literária ao poema mínimo, ele renovou o haicai aos moldes de como o conhecemos hoje.

Matsuo Bashô (1644-1694) foi o principal poeta de haicai de todos os tempos. Nasceu em Ueno no Japão e viveu grande parte da sua vida em Edo, atual Tóquio. Sua família era de samurais agricultores e, aos 23 anos, Bashô abandona o campo e vai viver de literatura.

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A maior parte de sua obra está presente em diário de viagem (nikki), sendo Oku no Hosomichi, ou Sendas de Oku em português, o mais conhecido, tratando-se de um clássico da literatura japonesa.

Bashô é reverenciado em todo o Japão como uma espécie de divindade, tamanha é a importância de seu legado na literatura daquele país.

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O mais conhecido haicai de Bashô é:

O velho tanque -

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Uma rã mergulha,

Barulho de água.

(Tradução de Paulo Franchetti)


HAICAI NO BRASIL

O haicai teve dois caminhos de entrada no Brasil. O primeiro foi por meio das traduções francesas e inglesas, em que se baseou o poeta Afrânio Peixoto, a citar, em 1919, pela primeira vez em uma obra literária, denominada Trovas Populares Brasileiras, o terceto japonês.

Nomes como Guilherme de Almeida, Paulo Leminski e Millôr Fernandes imprimiram suas próprias marcas no haicai brasileiro.

Guilherme de Almeida criou uma estrutura própria na construção do haicai, que foi muito difundida no meio literário. Para ele, o haicai teria 5-7-5 sílabas poéticas, mas constaria de título e rima, de modo que a sílaba final do primeiro verso rimaria com a sílaba final do terceiro verso, e a segunda sílaba do segundo verso rimaria com a última da mesma linha. Essa é uma estrutura utilizada até hoje pelos haijins (poetas de haicai ou haicaístas), embora não tão frequente.


O PENSAMENTO

O ar. A folha. A fuga.

No lago, um círculo vago.

No rosto, uma ruga.


Paulo Leminski renovou o ar do haicai. Desprendeu-se do rigor da métrica, muitas vezes não se ateve ao kigo, mas jogava todas as cartas no haimi, o sabor de haicai. Leminki tinha forte influência do haicai japonês, tendo dedicado uma biografia ao maior mestre do haicai, o já mencionado Matsuo Bashô.


A palmeira estremece

palmas pra ela

que ela merece


Millôr Fernandes já tinha um ar mais satírico em seus haicais, o que muitos até os classificavam como senryu - uma modalidade de haicai humorístico que não se preocupa com as estações do ano e se atém às mazelas do ser humano. Millôr manteve semanalmente uma seção com seus haicais (que ele denominava “Hai-kais”)na revista Veja, por mais de uma década, de 1968 a 1982.


Viva o Brasil

Onde o ano inteiro

É primeiro de abril


A outra grande via de entrada do haicai no Brasil se deu pelos primeiros imigrantes japoneses, que chegaram ao porto de Santos (SP), em 18 de junho de 1908, a bordo do navio Kasato Maru.

Com os japoneses, vieram, além das técnicas de cultivo para o trabalho, também sua língua e elementos culturais, como o ikebana, o haicai e a arte do chá, por exemplo.

Shûhei Uetsuka (1876-1935), de haimei (nome haicaístico) Hoykotsu, ainda a bordo do Kasato Maru, compôs o primeiro haicai no molde japonês, ou haiku, do Brasil:


A nau imigrante

chegando: vê-se lá no alto

a cascata seca

(Tradução Hidekazu Masuda Goga)


Já o imigrante Kenjiro Sato (1898-1979), de haimei Nempuko, foi quem primeiro desenvolveu um amplo trabalho de produção e divulgação do haiku japonês no Brasil, incumbido por seu mestre Kyoshi Takahama (1874-1959), que por sua vez foi discípulo do renovador Masaoka Shiki.


Poemas entregues ao discípulo Nempuku por seu mestre Kyoshi:

Faça um país de poesia

aonde leve esse navio

vento de primavera

**

Lavrando a terra

plante também

um país de haikai


Contudo, coube a Hidekazu Masuda, o conhecido e admirado “Mestre Goga”, a tarefa de ser o primeiro e grande divulgador do haicai tradicional em língua portuguesa. Mestre Goga, como era conhecido, foi o fundador, junto de sua sobrinha Teruko Oda, do primeiro grupo de estudos de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, de São Paulo, fundado em 15 de fevereiro de 1987 e ainda ativo.

Com isso, o gênero logo se disseminou pelos meios literários da época, chegando até os dias atuais.


APRESENTAÇÃO DO HAICAI

Haicai é sobretudo imagem. Um acontecimento do cotidiano, geralmente da natureza, ocorrido no aqui e agora. É a apreensão de um momento que toca a sensibilidade do poeta.

Por isso, o haicai é escrito em linguagem simples e acessível a todos os leitores. Devemos evitar palavras de difícil compreensão, preferindo a simplicidade ao rebuscamento.

O haicai pode ser praticado por qualquer pessoa, evidenciando assim seu caráter democrático.

Constitui-se basicamente de um poema de três linhas, ou seja, um terceto. Tem seus versos acomodados no formato 5-7-5 sílabas poéticas, sendo que o primeiro verso tem cinco silabas, o segundo tem sete e o terceiro tem cinco novamente. Claro que essa contagem pode ser aproximada, mas nunca passando muito de 17 sílabas poéticas ou ficando com muito menos.

Preferencialmente, segundo a orientação tradicional do haicai no Brasil, definida pelos estudos do Grêmio Haicai Ipê, de São Paulo, não se utiliza rima nem título.

O tema principal do haicai é a natureza. Sem a natureza não existe haicai. Por isso, a atenção do haijin está sempre voltada para as estações do ano e suas sutilezas. Mas como demonstrar nos haicais se eles são de inverno, verão, outono ou primavera?

Aí está outro mandamento do haicai tradicional, que é a utilização do kigo.

Kigo é um termo ou frase, expresso no haicai, que define a estação do ano a que aquele haicai se refere. Ou foi escrito. Por exemplo: beija-flor. Beija-flor é uma ave muito comum na primavera, certo? Devido a florescência das plantas, os beija-flores ficam mais evidentes nessa época do ano.

Um exemplo de haicai com kigo 'beija-flor':


ah, beija-flor, ah...

o jardineiro imóvel

sem pestanejar 

(Regina Alonso)


Outra característica relevante no haicai é que não deve ser uma frase contínua. Deve ter uma pausa, corte ou cesura, entre uma seção e outra, isolando o primeiro verso, ou o último. Isso é o que os japoneses chamam de kire (corte). 

A identificação dessa pausa entre nós geralmente se dá pela utilização de um kireji (termo de corte), que pode ser um travessão ou apenas a alternância de letras maiúsculas e minúsculas no início de cada verso. Mas, alguns haijins deixam para o leitor a tarefa de decidir onde melhor se encaixa essa pausa, escrevendo o início dos versos todos em letras minúsculas.


Barzinho de estrada -

Não sei se como ou abano

as moscas do prato.

(Teruko Oda)


Pamonhas no sítio

As trouxinhas amarradas

com todo capricho

(Carlos Martins)


silêncio na mata

a mariposa pousa na flor

outro silêncio

(Alice Ruiz) 


O primeiro verso do haicai normalmente apresenta uma cena estática. "Céu de outono" pode muito bem servir para esse primeiro verso. O segundo geralmente sugere um movimento, algo que acontece na natureza. Já o terceiro metro apresenta uma transformação da paisagem.

O haicai é acima de tudo uma forma de estar no mundo. De presenciar a natureza nas suas mais sutis transformações. Muitos têm o haicai como uma espécie de meditação, já que estimula o exercício de manter a mente concentrada no momento presente, mais ou menos o que prega o mindfulness e sua atenção plena. Outros, o relacionam com as práticas de zen-budismo. De qualquer forma, praticar o haicai é uma atividade muito prazerosa e que traz grande sensação de bem estar.

Agora que você já sabe um pouquinho da história do haicai, viu sua entrada e permanência no Brasil e teve dicas de como construir um terceto japonês, que tal colocar em prática? Tente! Todos nós podemos experimentar essa delícia que é escrever haicais.

Ah, e não se preocupe com o que pode ser ou não ser matéria para haicais. Já disse Kyoshi Takahama, o grande mestre de Nempuku Sato, que tratamos anteriormente:

Vento de outono —

Qualquer coisa que você vê

pode ser um haiku.

(Tradução de Maria Cristina Chinen Robertson)

Este texto foi elaborado pelo professor e poeta Éder Fogaça.


Éder Fogaça é natural de São Leopoldo (RS), do ano 1977. Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), dedica-se a escrever poemas e haicais em seu perfil no Instagram @ederfogaca. Nos primeiros anos de 2000, iniciou os estudos do haicai em oficina com a poeta e haicaísta Alice Ruiz e, posteriormente, em Santos, São Paulo, frequentou o Grêmio de Haicai Caminho das Águas. Nessa época, participou de exposição, no SESC Santos, que unia fotografia e haicais chamada "Natureza em Fotopoemas", com poemas do Grêmio de Haicai e fotos de Du, Palê e Zé Zuppani. Faz parte também da coletânea de haicais "Elã", editado pela Casa Três Editora, e da antologia "Clarões Manifestos", lançada pela Editora Bestiário. É autor de "Pelas beiradas e outros poemas deixados à margem" (poemas), "Caneca de chá" (haicais) e "Eu falo sozinho" (poemas). Atualmente reside em Palhoça, estado de Santa Catarina, Brasi



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