Dois escritores que vivem em Curitiba e são bem sucedidos na carreira, Cristovão Tezza e Wilson Bueno, além da arte em si, têm mais uma coincidência em suas vidas: ambos experimentaram na juventude o gosto da aventura hippie. Cada qual no seu tempo, na sua geografia e ocupando-se de atividades distintas. Hoje, olhando para esse tempo, cada qual tem uma visão diferente do que se passou.
Tezza não aceita a condição hippie para ele nem para ninguém, por acreditar que o movimento surgido na Europa não vingou no Brasil. Wilson Bueno afirma ter sido um dos bichos grilos, cuja finalidade era enfrentar a ditadura militar, sob o lema "paz e amor".
Cristovão Tezza ingressou na onda em 1968, aos 15 anos de idade. "Provavelmente se eu fosse uns três ou quatro anos mais velho, talvez tivesse me envolvido com a luta armada ou os movimentos políticos da época", avalia. Apesar de imberbe, dedicava seu tempo ao movimento estudantil e às artes. "Minha vida alternativa, digamos assim, foi o teatro", recorda. A estréia aconteceu numa peça com Denise Stocklos, e Tezza cuidou da iluminação.
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Ao deixar o Colégio Estadual do Paraná, o jovem não se direcionou à universidade. Influenciado pelo guru Wilson Rio Apa, que arrebanhava todos os jovens malucos da época, autor de romances e peças teatrais, foi tentar ser piloto da Marinha Mercante.
Não aguentou o regime militar e fugiu, falsificando a assinatura da mãe. Voltou para a comunidade de Apa, em Antonina. "Foi quando comecei a trabalhar mais consistentemente minha vida alternativa, e com um projeto artístico, literário e teatral". A literatura andava lado-a-lado, mas o rapaz tinha outros planos: fez um curso de relojoeiro e abriu uma porta em Antonina e, inspirado num poema de García Lorca, batizou-a de "Cinco em Ponto". Com essa disposição poética, é claro que o comércio não deu certo.
Os anos passados em comunidade não refletem necessariamente o movimento americano, segundo a visão de Tezza. "Fazendo um retrospecto daquela época, a idéia do hippie bem a rigor, como se vê historicamente, não vingou aqui, não foi um movimento muito acentuado", considera. "Havia uma cultura alternativa onde você escapava do sistema".
Nesse desvio havia uma espécie de bifurcação: uma parte seguiu o caminho do engajamento politico e outra parte acabou indo para as artes. Os ativistas intelectuais tomavam o impulso artístico como um estilo de vida; a arte passou a representar a própria existência. "Não interessava tanto se era escritor, poeta, ator. O importante era que você fizesse da sua vida uma obra de arte, esse é um aspecto interessante daquele tempo, daquela geração", considera.
Este é um traço desse período, que tinha outro importante aspecto: um certo messianismo. "Havia um irracionalismo de base, ou seja, a idéia do fracasso da razão", comenta Tezza. A razão tinha conduzido os militares ao poder, propiciado o totalitarismo. Então vinha o contraponto de fundo místico, como se cada um fosse eleito a cumprir sua missão de resistência ao estado atual.
As viagens astrais eram fruto dessa crença. "O pessoal era ligado em puxar um fuminho, mas comunitariamente. A coisa era muito inocente se comparada a essa indústria da droga que tem hoje". Tudo era uma festa comunitária: lia-se Herman Hesse, havia ligação mística com a natureza e no imaginário da garotada, mais do que criar objetos de arte, buscava-se a contestação do sistema. A arte era uma forma de denúncia, maneira de revelar as faces mais profundas da existência. "Acho que isso de certa forma marcou toda minha geração. O trabalho dos artistas daquele tempo tem esse toque".
Por essas e outras a vida era "uma ventura ética, antes de ser uma aventura estética. Então a idéia da cultura hippie, propriamente dita, não existia", conforme o escritor. O que havia realmente era a utopia a que os jovens se entregavam sem reservas nem pudores. "Era muito autêntico, muito forte".
Cristovão Tezza assegura que a sua geração testemunhou "talvez o melhor momento do teatro paranaense", no curto espaço do final dos anos 60 ao começo dos 70. O movimento de vanguarda era forte, havia efervescência cultural. "Hoje está voltando com outra face, completamente diferente. Agora é uma coisa mais profissionalizada".
Mesmo a visão da utopia desapareceu; não chegou às novas gerações. Professor universitário em constante contato com os jovens, percebe que o imaginário é diferente. "As pessoas hoje são mais pragmáticas, menos comunitárias no sentido de projetos comuns. São mais individualistas. Mas não estou colocando isso em juízo de valor, acho que não é melhor nem pior. É diferente. Acho uma bobagem ficar arrancando os cabelos e lamentando: "no meu tempo que era bom"".
Wilson Bueno - Enquanto desfazia-se a comunidade de Rio Apa em Antonina, Wilson Bueno ganhava a estrada. Depois de deixar a acanhada Curitiba para viver no esfusiante Rio de Janeiro, tornou-se hippie para contestar a ditadura. Era a resistência contra o modelo imposto pelos militares. Se a caserna queria ordem e hierarquia, os cabelos longos que chegavam até a cintura, as sandálias de couro e gargantilhas de latão representavam uma resposta às imposições.
"Era uma saída ao sufoco, mas ao mesmo tempo fazíamos uma resistência à ditadura até mais suicida que os companheiros da luta armada. Não nos escondíamos, estávamos expostos de cara lavada". Wilson e outros tantos da comunidade a que pertencia, foram de carona até Arembepe, na Bahia, supra-sumo do movimento hippie brasileiro.
Viveu lá durante seis meses. Ele conta que Salvador era uma cidade hiper reacionária. "Muitas vezes fomos recebidos a pedradas". Entre seus amigos estavam o bailarino Lennie Dalle e os andróginos do grupo Dzi Croquettes. Depois da festa, o sufoco da luta armada. O ex-hippie partiu para o outro lado do radicalismo, sempre motivado pela resistência.
"De tudo isso ficou uma frustração enorme", avalia hoje. Toda a luta, todo o sonho, todo empenho para a conquista de um mundo melhor, acabou não vingando. "Ficou a intenção de ser feliz, a intenção cantada na voz estrindente de Janis Joplin, que era a de criar um mundo onde houvesse apenas o amor, e não a guerra". Dessa história toda não restou "um cêntimo que fosse de nossa utopia".
Herança Sonora dos Hippies
Para brigar contra o sistema os hippies criaram uma linguagem própria seja na aparência como na filosofia, e influenciaram algumas bandas que reproduziram em sons a sua forma de visão do movimento. Também aqui houve duas correntes: a da música alegre e barulhenta, com a estridência das guitarras, e a de uma música soturna, melancólica. Aqui entram o violão, o ritmo folk.
Em Curitiba jovens roqueiros enveredam por esses terrenos, segundo Marco Stecz, que juntamente com Neri da Rosa, produz e apresenta "Último Volume", programas que vai ao ar às sextas-feiras, às 21 horas, na Rádio Educativa FM 97.1. Como a rapaziada nasceu muito tempo depois do movimento contestatório ter dado o suspiro final, a informação vem através das velhas gravações.
A influência é "muito sutil", na observação de Stecz. Seja como for, "eles herdaram o pensamento e os elementos daquela época", continua. A banda Vadeco & Os Astronautas, por exemplo, mistura elementos psicodélicos com letras espaciais e sons eletrônicos impensáveis para a época. Os Mamelucos Orbitais, por sua vez, colocam com frequência em suas letras temas de paz e amor. "Tem muito de Mutantes", avalia Stecz.
A Velvet Underground tem uma tendência mais voltada ao The Doors; enquanto a Alphapsicotics bebe das fontes do experimentalismo dos anos 60. Mais radical, a Faichecleres tem um som "bastante anos 60" e mesmo o visual remete a esse tempo. O repertório é alto astral. "Hoje em dia é difícil criar coisa nova no rock. A maioria das bandas bebe naquelas dos 60", resume o produtor.