Cinema

Máquina mortífera

19 mar 2004 às 11:00

Regra: quando a polêmica toma proporções maiores que o filme, é bom desconfiar da qualidade da produção. Se a bilheteria for imensa, então, duvide em dobro: quase sempre significa que é golpe. Eis A Paixão de Cristo de Mel Gibson que não me deixa mentir.

A verdade é que a polêmica – o filme é anti-semita? – faz mais sentido quando pensamos na responsabilidade do autor em lidar com certos temas. "Eu posso não concordar com o que o senhor quer dizer, mas defenderei até à morte o seu direito de o fazer", já dizia Voltaire. Parece ingênuo acreditar que o filme possa gerar uma nova onda de intolerância. Primeiro, porque basta conferir o noticiário internacional para constatar que já vivemos em tal onda. Segundo, porque esse papo de influência é menosprezar a audiência. Portanto, mais pontual é outra questão: afinal, por que Gibson fez esse filme?


Se considerarmos verdadeira a proposta de um "ato de fé" (mesmo sendo difícil descartar a hipótese de pura estratégia de marketing), só podemos concluir o quão tacanha e obtusa é a visão de Gibson. A justificar o golpe de marketing, o resultado excepcional das bilheterias, decorrente da celeuma em torno da forma que os judeus são mostrados. É de se pensar. A presença da bela Mônica Belucci como Maria Madalena, e que em termos de interpretação, oferece muito pouco, é outra pista desse caminho. Um acessório de luxo, nada mais.


Independente desses fatores, A Paixão de Cristo poderia resultar em uma boa produção. À despeito de ideais, grandes filmes ou livros já foram escritos por gente de posição política ou filosófica discutível. Em cinema, sempre é bom lembrar de D.W. Griffith e O Nascimento de uma Nação ou Leni Rifensthal e seu Triunfo da Vontade.


Gibson fracassa. É mau diretor, e para isso já bastava assistir o oscarizado Coração Valente. Falta de timing e de sensibilidade parecem ser seus maiores deméritos atrás das câmeras (não que à frente delas seja muito diferente, claro).


A Paixão de Cristo começa no Jardim das Oliveiras em uma seqüência que lembra muito O Senhor dos Anéis. Sinal dos tempos. Logo após, começa um banho de sangue sem precedentes em filmes bíblicos. Gibson erra a mão feio em optar pela violência gráfica para narrar as últimas 12 horas do Cristo. A questão dos judeus, que entregam Jesus e o tratam com requintes de crueldade, é um caso à parte. Nada justifica tratar tanta intolerância com a mesma dose.


A falta de sutileza de Gibson é marcante. A ressurreição de Cristo é breve e mal conduzida por um simples motivo: o diretor não sabe traduzir elementos mais complexos em imagens. Sua especialidade, se é que se pode chamar assim, é a violência – que existe em um nível quase insuportável.


E o filme perde por esses excessos. O momento da crucificação é emblemático. Não basta Gibson nos oferecer um close de uma das mãos de Jesus sendo pregada na cruz. Ouvimos o som de ossos se partindo quando são pregados os pés. Jesus, ou melhor, Jim Caviezel (que representa o papel com dignidade), urra. Os soldados romanos com a cara pintada de sangue são toques desnecessários e nada sutis de um diretor amador. Tudo em nome de um suposto realismo.

Balela. A Bíblia, sabe-se, é um texto de poucas descrições apuradas – e por isso mesmo dá margem para interpretações variadas. Não há "realidade" possível nesse tipo de cena (aliás, é questionável falar de "realidade" no cinema). É o entendimento da Paixão sob o olhar de Gibson. Nesse sentido, podemos deixar romanos e judeus fora disso: quem mutila Jesus é o próprio diretor.


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