Foi um show de pouco mais de meia-hora. Miles Davis (1926-1991) tocou para 600 mil pessoas, a platéia estimada no célebre festival da Ilha de Wight, realizado em 1970. A performance, registrada pelas câmeras, é o ponto alto do recém-lançado DVD ''Miles Electric: A Different Kind of Blue'', que inclui entrevista com o artista e depoimentos de outros músicos.
O trompetista foi o único artista do mundo do jazz escalado para o palco, que receberia astros do rock como Jimi Hendrix, The Who e The Doors. Miles improvisou ao lado de Garty Bartz (sax), Keith Jarret e Chick Corea (teclados), Dave Holland (baixo), Jack deJohnette (bateria) e o brasileiro Airto Moreira (percussão).
Este último tocou cuíca no show. O grupo executou um único tema. Depois, quando perguntaram o nome da composição, Miles respondeu: ''chamem de qualquer coisa''. Não houve hostilidades por parte do público, como ocorrera em shows anteriores durante sua fase de transição para o jazz elétrico, quando puristas empedernidos chegaram a atirar rolos de papel higiênico sobre os músicos de sua banda.
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Num flagrante da câmera, é possível visualizar o cantor, compositor e atual Ministro da Cultura Gilberto Gil sentado de cabelão e sem camisa na platéia. No DVD, a apresentação no Festival é antecedida por diversos depoimentos sobre Miles, quase todos abordando sua guinada em direção ao rock e ao funk ocorrida, como é lembrado num trecho do documentário, sob impacto e influência de Jimi Hendrix, James Brown e Sly Stone.
''Quando ouvi 'Bitches Brew'' pela primeira vez, achei que ia subir pelas paredes. Eu batia os pés, as mãos. Era demais, muito intenso. Era tudo o que eu tinha imaginado sobre a música do futuro'' assinala o músico Paul Buckmaster. ''Bitches Brew'' foi lançado em 1969 e estabeleceu de vez o ''fusion'' a fusão do jazz com o rock e o funk. É, até hoje, o álbum mais vendido na história do jazz.
Em outra passagem, o guitarrista Santana refere-se a Miles salientando que ''é preciso ter coragem para abandonar o porto seguro e saltar de pára-quedas''. Sem esconder a admiração pelo trompetista, ele veste uma camiseta estampada com o rosto do ídolo. O próprio Miles aparece reforçando a mitologia: ''Eu faço mudanças, não consigo evitar. Não que eu seja um gênio, mas não posso evitar. Toco de um jeito tanto tempo que preciso mudar para que o público posso gostar'' diz ele, com sua voz arranhada, enquanto rabisca desenhos num papel.
A cantora e namorada Betty Davis é apontada no documentário como a principal responsável pela conversão do músico às tendências pop. Ela teria aberto seus olhos e ouvidos para o novo e lhe apresentado Jimi Hendrix e o rock pesado. Mais adiante, é destacado o álbum gravado por Miles em homenagem ao lutador de boxe e campeão dos pesos-pesados Jack Johnson. O disco, segundo o documentário, teria deixado Hendrix de joelhos.
Mas as conexões do músico com os movimentos no ringue vão além, como observa o saxofonista Dave Liebman em seu depoimento: ''Quando ele começa a tocar, você posiciona as mãos, bloqueia, dá um jab e tudo mais. É a velocidade, os recuos, o tempo da reação, a queda, as combinações. No jazz, o principal ingrediente é o improviso. Somos treinados para sermos rápidos tecnicamente e treinados para pensar, ouvir, reagir rapidamente e ver o que vem na sequência. O boxe é uma arte que combinava com esse ritmo e essas nuances. Acho que Miles conseguiu perceber isso'' diz.
Embora sejam hegemônicos ao longo do documentário, os comentários sobre a obra do mais audacioso artista da história do jazz não se limitam ao confetes. A decisão do artista de plugar o trompete na tomada elétrica, nos anos 60, desapontou muita gente. Para o crítico Stanley Crouch, a mudança não teria passado de um ''lance comercial''. ''As pessoas diziam 'não, Miles não se vende, só está progredindo', quando ele só estava tentando ganhar dinheiro'' assinala.
Na época, o público de jazz também rejeitou suas mutações sonoras. Mas o artista manteve-se alheio às reações negativas. ''Certa vez, quando começamos a tocar, a platéia começou a atirar objetos no palco. Miles virou-se e disse: 'continue tocando. Existem duas vibrações aqui, uma no palco e outra no público. Continue tocando. No final da noite, todos nos aplaudiram de pé por dez minutos'' conta o saxofonista Garty Bartz.
Há depoimentos ainda de Herbie Hancock, Chick Corea, Jack deJonette, Keith Jarret, Airto Moreira e Joni Mitchel.
Serviço:
DVD ''Miles Electric: A Different Kind of Blue''
Lançamento: ST2 Vídeo (tel. 11/3662-1225)
Preço: R$ 39,90.